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4. 09. 2018

Para a minha segunda terapeuta


A coisa que mais desgosto é ordenarem-me a escrever. Nem mesmo eu posso fazer isso. Não é por ódio que escrevo agora, contudo, mas, sim, por conselho. Voilá, isso talvez amenize o peso da coisa toda. Estou tentando, senhora terapeuta, entender que não sou, mas estou. Justamente, estando avesso ao mundo, me sinto desinteressado. Estou cansado da canseira. De onde ela vem? Poderia, senhora terapeuta, sugerir muitas coisas. Como por exemplo acusar as coisas vividas no passado. Afinal, não são as dores de hoje uma comunicação direta do ontem? Mas, até agora não consigo me decidir o que é o passado. Como saber o que entendo daquilo que ele me diz? Estou cansado como um terreno lavrado sucessivas vezes. Até à exaustão de seus recursos. Um terreno seco, ácido, de onde brotam pedras e torrões. E nenhuma fruta que se prove saudável.


Tenho tido tanta coisa boa na vida. E a sensação de não as ter aproveitado como deveria. Por quê? É uma pergunta que invade as minhas meditações. Mesmo que eu saiba que, sendo uma questão incauta, não sugere efeito em terrenos onde os porquês não cultivam coisa boa. Ou coisa alguma. Tem muitas coisas que não sabem responder a perguntas. Nós somos um exemplo disso.


Os meus porquês, senhora terapeuta, são escadas lançadas para o alto, na tentativa de escapar de onde me encontro. Não se trata de uma fuga, mas de uma saída à francesa. Ter bons modos é rejeitar sem dizer. É sair sem causar alvoroço. Como quis sair de mim mesmo, no meio da noite. Na penumbra, na ponta dos pés. Para que o prédio todo não descubra e não estremeça com o furtivo abandono. Tenho sido um ótimo abandonador de pessoas. Mas isso não se aplica a mim e ao passado. Não tenho sabido esquecer acontecimentos.


Estou numa parada de ônibus cujos horários são eternamente alterados sem aviso prévio. Pode ser que ele venha me resgatar dessa espera infinda agora mesmo, daqui a cinco minutos ou nunca. Nesses momentos, lembro que estou parado. E não tem nenhum ônibus à vista. Essa terra-esperança que se move sobre o mundo em movimento. Um chão crível. Um chão que acolhe meus pés paralisados e anda por eles. E percorre as distâncias que meu coração deseja. Mas estou parado. Sem ânimo.


É bom (ou não) recordar que, em Latim, alma é anima. Não ter ânimo, então, é estar desalmado. Você já viu alguém de alma desabitada? É terrível. Quando isso ocorre ininterruptamente, dá-se a pessoa por morta. Coisa que seria ilógico declarar sobre aqueles que, como eu, estão esvaziadas esporadicamente de si mesmas. De suas almas. Preciso do sopro da vida. E encontro-o em muitos lugares, mas nunca mais de uma vez. É um raio raro e imperfeito que ilumina apenas pelos próximos passos – quando eles se tornam, temporariamente, possíveis. Preciso me mover, mas como?


Por ora me aceito inerte. Do luto, me enviarei à luta. Ainda que ela seja contra meus sentimentos. Tem essa guerra dentro de mim. Esse conflito mundial. Muitos países e regiões se debatem sobre quem sou. Ou quem irá governar. Os estilhaços da verdade íntima refletem mil sóis lá fora. E é difícil enxergar a vida sem ser através de cacos de vidros. Enxergo prismas, não paisagens. Tudo é uma colagem caótica. A guerra se reporta em fragmentos. Não sobrará um discurso coeso, um relato inteiro. Sou muitas narrativas. Muitas falas.


Recuso ser uma pedra, muito embora, por nome, seja isso o que eu seja. Prefiro estar uma pedra. Amanhã, quem sabe, viro água. Tudo pode acontecer amanhã. Perder a guerra não vou, senhora terapeuta. Não aceito a derrota pelo passado. Aquele que não fui eu quem inventou.



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