Hoje, como de costume, desci do ônibus duas paradas depois do local no qual deveria desembarcar para andar o máximo possível até meu consultório. A rua pela qual eu deveria me deslocar é bastante movimentada e o caminho mais curto até meu local de trabalho é repleto de pequenos estabelecimentos comerciais – em sua maioria autopeças, lojas de tintas, bares e mercados – grandes garagens coletivas, algumas casinhas escondidas e uma dezena de espaços sortidos de fé. A rua pela qual gosto de caminhar até o meu destino não tem coisa qualquer. Nada. Nada que pareça ser significativo para que a gente diga que alguma coisa ali justifica esse costume de descer duas paradas depois. Pra ser bem honesto, a ruazinha nem é muito charmosa. Por ali estão casinhas simples, calçadas tortas e de terra batida, pedregulhos e paralelepípedos assimétricos adornados por pequenos tapetes de musgo, dando a impressão de que o movimento de automóveis é bem pequeno por ali. A rua cheira a comida caseira e desinfetante e soa como se pequenos segredos pedissem pra ser escutados em cada uma das janelas pelas quais a gente passa. E os cachorros dos pátios e das frentes das casas se dividem entre uma preguiça infinita e a orquestração sincopada de latidos curiosos. Eu costumo andar flutuando ligeiro por ali. Não só pelo horário, pela necessidade de não chegar atrasado ao meu destino, mas por ter aprendido que ruas desertas são perigosas. Todos os meus lugares favoritos em Rio Grande são desertos. Teve uma época em que eu trabalhava perto da praça Tamandaré, centro da cidade, ponto de referência e de embarque e desembarque dos ônibus que circulam no município. Trabalhava de noite e até tarde. Volta e meia decidia que ia sair do trabalho, comprar uma bobagem qualquer e sentar em algum lugar pra engolir a pequena refeição do intervalo enquanto não ouvia ou dizia qualquer coisa. Nada. Certa vez, sentado na murada de um dos lagos da praça, fui abordado por dois agentes da segurança pública, dois guardinhas, um de cada lado, sorrateiramente em uma emboscada: “o que tu tá fazendo aí?”. “Nada”, respondi. Pediram meus documentos e os verificaram enquanto eu era orientado sobre os perigos de estar naquele lugar. Disseram que eu parecia gente boa, mas que ali era perigoso e que não tinha nada pra ver nem pra fazer. Insistiram que eu deveria procurar um lugar seguro, com mais gente, gente pra que eu pudesse conversar e me distrair. Acho que se eu tivesse insistido tinha até chamado algum serviço de saúde pra fazer uma avaliação do meu estado mental. Eu era o velho surdo de Hemingway buscando nada y pues nada y nada y pues nada, de boa, não um nada absoluto, mas a possibilidade de um nada, que insistia em ser um perigo. Esses dias, num início de semestre, numa dessas conversas onde a gente se apresenta e fala um pouco sobre nossa trajetória, nossa vida e tudo mais, conversamos sobre coisas que a gente gostava de fazer. Quando chegou na minha vez de falar, eu só conseguia pensar em “nada”, mas percebendo que ia dar pano pra manga, decidi achar alguma outra coisa que não fosse nada. Era mais seguro. E eu aprendi que nada é perigoso. No nada há um ponto cego, um espaço-tempo de suspensão, uma possibilidade de abertura, uma partícula do sensível e do contemplativo que destudifica, suaviza e reforça o si-mesmo, mesmo numa desejável coletividade saudável. O nada, o silêncio e assim por diante são fundamentais para que a gente possa entender tudo aquilo que acontece ao redor e por dentro. E é por isso que são tão perigosos. São terreno fértil pra criatividade, pra compreensão, pra abstração, pra ressignificação, pra contestação e por aí vai. Eu sigo descendo duas paradas depois. Não se trata de um incontrolável desejo de afastamento do mundo, uma fuga, um delírio de ensimesmamento. É justamente o contrário. Trata-se da possibilidade de olhar pro abismo como ele é – um espaço-tempo pra olhar pra gente e pra como a gente olha pro mundo e de devolver essa elaboração como forma de compreensão legítima (mas não completa, é claro) do outro numa espécie de superação da expectativa de como devemos nos relacionar. É o perigo de ser o próprio criador manejando esse barro divino que dá forma e deforma em cada passeio repetido pelo nada da rua de duas paradas depois que possibilita a compreensão de que “nada” não é desinteressante quando a gente respira e percebe os mínimos detalhes que rejeitam o riso enlatado, a assepsia das cordialidades ou, em última instância, o “grande Outro das aparências”, como diria Žižek.
Régis Garcia é músico, psicólogo, professor, cachorreiro, curte barulho, ruídos, vinil, cinema, literatura, experimentalismos e esquisitices em geral.
Baita texto! O Nada e a sua maneira particular de jogar na nossa cara que a vida é pra ser vivida por quem vive.