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A cerveja como personagem histórica: da cozinha suméria ao mercado da esquina

O verão se aproxima. Vou com minha bicicleta até o mercado mais próximo e abro o freezer. Encontro uma grande variedade de rótulos e estilos de cerveja gelada. Volto pra casa com uma Weiss refrescante por um preço justo e sem precisar me deslocar muito pra isso. O mercado cervejeiro é um dos que mais crescem atualmente no mundo. Os consumidores estão cada vez mais exigentes e estima-se que só no Brasil existam em média 700 fábricas regularizadas, sem contar os inúmeros produtores caseiros, ou cervejeiros “de panela”, entre os quais eu me incluo.


Mas nem sempre foi assim. Se beber cerveja é, em si, uma experiência fascinante, conhecer sua história torna tudo ainda mais rico. A cerveja é uma das bebidas mais antigas do mundo e sua produção teve início justamente com o processo de sedentarização da humanidade, ainda no começo do Neolítico. A primeira construção de que se tem notícia é o Göbekli Tepe, na atual Turquia. O prédio foi construído por volta de 10.000 a. C. e teria servido como uma espécie de templo, antes mesmo do desenvolvimento da agricultura. O curioso é que em seu interior foram encontrados tanques de cerca de 150 litros, nos quais havia resquícios de oxalato, um sal resultante da mistura de cevada e água, ingredientes-base da cerveja. Esse vestígio tem sido suficiente para que alguns historiadores afirmem que o Göbekli Tete pode ter sido planejado para ser um grande ponto de encontro dos grupos caçadores-coletores para produzir e consumir... cerveja. É claro que essas evidências não são o bastante para que se confirme qualquer hipótese, mas é provável que a cerveja tenha acompanhado a civilização humana desde o seu começo.


O primeiro povo a registrar e enaltecer o consumo da bebida foram os sumérios (5000 a.C.), habitantes da Mesopotâmia, atual Iraque. Eles gostavam tanto de cerveja que tinham uma deusa associada exclusivamente a ela: Ninkasi. Na Suméria cerveja era coisa séria e de mulher. Elas fabricavam a bebida em suas cozinhas e vendiam em tabernas em suas próprias casas. Os egípcios também eram grandes apreciadores do líquido, homenageando a deusa Hathor em seus rituais de bebedeira coletiva que se estendiam por dias e usando a cerveja como pagamento por serviços prestados. Como gregos e romanos eram mais adeptos do vinho e os vikings curtiam inicialmente um bom hidromel, essa história nos leva direto às abadias medievais. Segundo Mark Forsyth, estudioso da área, cada monge chegava a receber um barril de 5 a 8 litros de cerveja por dia. Nos monastérios foram desenvolvidos estilos importantes de cerveja, muito apreciados até hoje, como as chamadas “cervejas trapistas” da escola belga, apenas para citar um exemplo. Elas também eram oferecidas aos viajantes e o excedente era vendido para camponeses e pessoas menos abastadas.


Ninkasi bebendo cerveja

No final da Idade Média também já existiam lugares específicos para o consumo da bebida – as alehouses, uma espécie de antepassado dos pubs modernos. De lá pra cá, a produção e o consumo de cerveja parecem ter acompanhado o curso da história, industrializando-se e com os estilos multiplicados em larga escala. A Pilsen, talvez a mais apreciada pelos brasileiros, é originária da República Tcheca e foi produzida pela primeira vez em 1842.


Hoje são muitos os lugares onde se pode encontrar uma cerveja de qualidade. Cada vez mais os pubs, com suas várias torneiras de chopp artesanal, ganham espaço entre o público jovem, que antes parecia mais preocupado com a quantidade do que com a qualidade da bebida que consumia. O slogan “beba menos, beba melhor” aparentemente tem se comprovado. A boa e velha cerveja segue insuperável como a bebida alcóolica mais popular e democrática da história, estando presente nos mais variados eventos sociais dos mais diversos grupos humanos. Ela atravessou os séculos, subverteu normas, serviu de comunicação com o sagrado, empoderou mulheres e segue deixando qualquer encontro mais leve e animado. É domingo. Seis da tarde. O dia tá quente e perfeito pra mais uma aventura de garimpo por novas cervejas aqui no Cassino. Hora de pegar a bici e começar tudo outra vez.

Juliana Cruz é professora de História, feminista, cervejeira e cassineira apaixonada.

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