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A respeito da névoa rio-grandina

Era para ter sido o meu terceiro ano na cidade de Rio Grande e ainda hoje sinto uma forte sensação de que poderia ser na verdade o trigésimo, a despeito das horas cada vez mais arrastadas e monótonas as quais eu preenchia com inúmeros afazeres ou com alguma instantânea diversão aqui e ali. Às vezes, principalmente quando, sob o Sol, eu passeava pela praia sentindo o calor da areia aquecendo os pés, um forte desejo de mudança e renovação tomava conta de mim e, então, me vinham vários devaneios sobre como poderia ser completamente diferente a minha vida caso eu estivesse em outro lugar qualquer que não fosse ali, naquela cidade. Em momentos como esse eu fixava o olhar na linha azul do horizonte e por um longo tempo tentava imaginar que tipo de vida seria a minha se eu tivesse decidido ir tentar a existência em outros cantos. Engraçado como, naquele tempo e mesmo agora, confesso, tenho tendência a pensar que o lugar onde alguém está determina de tal maneira a sua personalidade, num certo momento, que exagero afirmando a mim mesmo que meu humor e a sua variação é resultado da mudança dos ventos, da intensidade da luz solar, dos barulhos da cidade, do coaxar das rãs etc. Havia uma urgência em meu coração que só algum tempo depois fui descobrir não ter a ver totalmente com a cidade e o clima rio-grandino, mas que estaria dentro de mim onde quer eu fosse. Naqueles dias a cidade caía pesada e inteira sobre o meu ser, cada beco e cada meio-fio pareciam exercer uma enorme influência sobre o meu espírito. Eu poderia começar a descrever como Rio Grande se mostrava para mim e como eu a via, falaria sobre as suas ruas e a sua praia, – faria a descrição mais pormenorizada de todos os seus bairros por mim frequentados – falaria também sobre a sua gente e o que eu pensava e sentia por ela; porém, havia naquele tempo uma certa peculiaridade que não me permitiu formular nada em termos descritivos, porque tal peculiaridade foi de tal importância para o desenrolar dos acontecimentos que eu apenas devo escrever sobre isso e nada mais. Sobre o que escreverei agora pode não parecer nenhuma novidade para quem conhece os climas úmidos e gelados, contudo, para aqueles espíritos sensíveis ao frio ao ponto de poderem senti-lo tocar a alma e, com isso, repensar toda a sua existência, creio que deva ser o caso de uma leitura deveras interessante. Portanto, tratarei do assunto sem mais demora.


Certa noite de fins de outono, no momento em que alguns estavam em seus lares aquecidos jantando com as suas famílias enquanto outros farreavam em qualquer bar do Centro ou do Cassino, sentado no banco de couro todo ensebado de um ônibus, eu retornava para casa depois de um dos mais normais e previsíveis dias da minha vida. As aulas haviam acabado e eu, não desejava nada além de poder me deitar em minha cama. Então, mergulhado na mais profunda monotonia, veio-me à mente a ideia de escrever sobre aquilo que naquele exato instante eu contemplava tão distraidamente através da janela embaçada do ônibus. Talvez alguém que me conheça e que esteja agora lendo esse escrito se lembre da vez em que eu discorri sobre aquela ideia dostoievskiana acerca do fato de existirem certos pensamentos que nos atingem com tanto ímpeto e que tomam conta da nossa consciência de tal forma que nos transformamos quase em monomaníacos. Foi o que me ocorreu a partir do momento em que fitei a densa névoa e me hipnotizei por ela. Toda a minha atenção dirigiu-se à essa névoa enquanto brotava cada vez mais forte em mim um desejo irrefreável de descer do ônibus e ir até onde ela se fazia mais densa.


Tratava-se de uma névoa insuportavelmente densa, de uma opacidade carregada tal qual a da neve, pesada como mil mundos brancos, mas que flutuava no ar tão serena e teatral, que fazia parecer que as árvores e prédios devessem despender um grande esforço para se manterem presos ao chão, como se mais fácil fosse levitar. Sua branquitude escondia todas as figuras escuras que deveriam estar ali em algum lugar, maquiava todo o céu e sumia com as estrelas, reduzia o horizonte transformando-o em um dado bruto há um palmo do meu nariz, privava os meus olhos das lonjuras da cidade. Tudo acabava se resumindo no vagaroso movimento dessa parede pálida que me cobria as vistas. Eu sentia-me estranhamente atraído e queria, naquele instante, me perder em meio à névoa até às últimas consequências.


Desci do ônibus perto de minha casa. Mas minha experiência de atração mudou completamente ao primeiro toque com a névoa. Ela me engolia, como Saturno já fazia há muitos anos. Era-me dolorosa a sua visão. Meus olhos lacrimejavam. Sentir suas partículas em minha pele me causava queimaduras que se aprofundavam até queimarem os ossos. Senti como se não fosse ser capaz de caminhar até a minha casa, pois havia começado a perder o vigor nas pernas. Demorei muito tempo até conseguir finalmente chegar e abrir a porta, mas, então, as lágrimas fizeram-se em choro quando entrei. Havia névoa também dentro da casa, embora eu soubesse com total certeza que as janelas estavam todas trancadas. Sem poder enxergar nada, tentei acender quantas lâmpadas eu conseguisse, porém com elas acesas, tudo o que consegui foi uma visão ainda mais branca e ofuscada. Eu me doía todo, até em lugares que nem mesmo a psicanálise sabe onde ficam.


No ápice da minha angústia e terror, julguei estar tendo um pesadelo. Despontou em mim a expectativa de que de um instante ao outro eu iria acordar e de que saberia que essa névoa se trataria apenas de um mau sonho. Foi quando repentinamente eu acordei em minha cama, ofegante e banhado em suor. Aliviado e com o coração em brasas, corri para o banheiro para me olhar no espelho, meus olhos estavam muito vermelhos e meu rosto gelado e embranquecido. Voltei para o quarto e ao ver o relógio percebi que era de manhã e que ainda havia um dia inteiro pela frente. Tomei o meu café e saí voando de casa para abraçar novamente a minha rotina.


Desejaria muito que houvesse a possibilidade de traduzir minimamente bem em palavras, a mudança que ocorreu no meu mundo a partir do dia em que sonhei com a névoa rio-grandina. Desde então eu notava no ar uma umidade e um frio muito diferentes daqueles característicos da cidade de Rio Grande. Era um ar molhado e congelante de inverno que eu sentia até mesmo no verão, um vento forte que soprava uma espécie de promessa, uma anunciação, que avisava que ali era um lugar no mundo onde o viver engolido pela névoa é coisa comum a toda gente.




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