Colônias de estrangeiros guardam muitos segredos, no Brasil ou em qualquer lugar. Basta uma rápida conversa com um dos tantos senegaleses que andam por aí pra ver que o teu boleto atrasado é café pequeno perto dos choques de realidade que eles têm a oferecer.
Sendo filho e neto de imigrantes árabes, me aproveito do lugar de fala prum rápido parêntese. Cresci ouvindo histórias um tanto escabrosas envolvendo meus antepassados; algumas delas só vieram à luz depois de adulto formado. Como essa da minha saudosa vó, por exemplo. Nunca engoli bem aquele jeitão Mama Fratelli dos Goonies, quase sempre ranzinza e mal-amada. Tampouco entendia porque só minha irmã ganhava dela carinho, sorrisos e presentes de Natal, enquanto os netos ômi não podiam dar um pio durante as novelas do canal Dubai na NET. Pois bem: mais recentemente eu soube que, ainda no Líbano, ela foi "doada" aos 12 anos ao meu avô (então solteiro e uma década mais velho) como pagamento de uma dívida. Sim, casamento infantil ainda é comum por lá. E hoje, com as coisas mais claras (?) só me resta perdoar a véia por minha infância capenga.
Essa introdução autobiografia-no-divã foi pra ilustrar minha indignação com algumas coisas que li sobre o drama Cafarnaum (Capharnaüm, Líbano/França, 2018), e que irei retomar mais abaixo.
Pra começar, o que temos aqui é a sessão de cinema mais triste de 2019. Fato é que a vida lá fora anda tão, mas tão bosta que um dos filmes-sensação da temporada narra a história de um menino que decide processar os próprios pais por ter sido trazido ao mundo. Trata-se de um ataque frontal e direto à alienação parental, pela câmera nervosa da cineasta árabe Nadine Labaki. Mas é também um libelo contra a caótica situação da imigração no Oriente Médio.
Neste seu terceiro longa, a diretora segue os passos do pequeno Zain (Zain Al Rafeea, ô guri sensacional), filho de refugiados que carrega uma série de responsabilidades numa comunidade barra-pesada de Beirute. É ele quem traz dinheiro pra casa fazendo bicos de mascate, e ainda cuida de seus irmãos no cortiço em que vivem com os pais, ausentes por causa de trabalho. Zain rompe de vez a relação com os velhos quando eles tomam a decisão de casar sua irmã Sahar, de 11 anos (ora, ora) com um comerciante do bairro. Ele foge de casa e passa a viver nas ruas junto aos refugiados e outras crianças, até conhecer Rahil (Yordanos Shiferaw), uma imigrante etíope sem documentos que confiará a ele seu filho Yonas (Treasure Bankhole, Oscar de melhor bebê de todos os tempos) enquanto ela trabalha. O que se segue é o inferno na Terra, ou quase isso, até culminar com a decisão do menino em levar sua história ao tribunal.
Quem anda meio borocoxô com a Nova Era (alguém não?) talvez não queira se submeter a duas horas tão desoladoras. Agora, se é pra botar pra fora e enxugar ranho com uma caixa de Kleenex ao lado, vai por mim: Cafarnaum é o filme. É cinema-realidade, a um passo do documental, sem alívio cômico e outras frescuras a que o cinema ocidental nos acostumou.
Volto agora à indignação lá de cima. Boa parte dessa neocrítica asséptica e que já não se importa com discursos humanistas decidiu classificar Cafarnaum como piegas, manipulativo, "pornomiséria" pra baixo. Sim, a estética do filme é suja e indigente. Sim, ele pisa fundo no psicológico e te deixa com o coração feito um tijolo. Mas é preciso considerar que esse tipo de visão "antiestética da pobreza" não cabe aqui. Cada povo é um universo em si, com um conjunto de particularidades que precisa ser considerado e respeitado. Os ruídos são diferentes, a aparência, os costumes e maneira de se comunicar. Como defendeu a diretora à Agence France-Presse, "não há muita imaginação nesse filme, tudo o que há é realidade". Enfim, quem desconhece o real sofrimento das classes mais miseráveis do planeta não tem muita moral pra apitar, simples assim.
Cinema não serve só pra vender bonecos e McLanches. Cinema é também denúncia, é política, engajamento social. É soco na boca do estômago. E serve pra lembrar que os marginalizados também merecem ter sua realidade não apenas eternizada pela arte, mas também discutida e transformada. Não à toa, o filme vem provocando uma série de reflexões entre a sociedade árabe acerca da imigração ilegal.
Algumas curiosidades de bastidores mostram que Nadine tem razão em cutucar a ferida. Um detalhe incrível é que ela escalou seu elenco dentre favelados com histórico semelhante ao de seus personagens. As duas mães de Yonas, a de verdade e a do filme, foram presas durante o filme. E Zain, que era mesmo um refugiado sírio na época das filmagens, conseguiu asilo político na vida real e hoje mora com a família na Noruega. Não tem como não inflar o peito ao saber disso.
Enfim, Cafarnaum tem tudo pra te virar do avesso. E aquela cena final, então, vai te acompanhar por um bom tempo. Aposto um kibe que minha vó - aquela velhinha mal-encarada que abriu mão de brincar, conviver com os irmãos, de ser adolescente e ter uma vida de escolhas pra se casar com um estranho muito mais velho que ela - abriria um sorrisão com esse último frame.
Fernando Halal é jornalista e fotógrafo, apreciador de rock, cinema, churros e, naturalmente, vídeos de bichinhos.
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