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Caminho sem volta

Mãe, será que tu não pode deixar de ser mãe só um pouquinho?


O teste de farmácia positivo com um dia de atraso da menstruação me deu de presente a gravidez mais demorada do mundo. Cada enjoo tinha motivo, a primeira ecografia só encontrou o saco embrionário, "pode não vingar", a segunda, para ver se vingou, um feijãozinho com batimentos cardíacos, a terceira já tinha braços e pernas, mãos e pés, embora ainda não desse para contar os dedos.


Cada milímetro do meu corpo cresceu com a consciência de que deveria crescer, cada centímetro de seio e barriga era analisado e festejado, cada quilo a mais - e foram muitos, se acomodavam sob o macacão de grávida comprado na feirinha, nas batas, nas cinturas de elástico, numa deselegância nada discreta. As roupinhas dadas pelas avós iam parar em gavetas perfumadas com sabonetes de bebê e forradas de papel contact colorido, o primeiro urso de pelúcia foi fazer companhia aos livros na estante, e mais livros foram chegando: sobre gestação, psicologia, manuais, nutrição, livros infantis - o primeiro foi um daqueles de banho, de borracha...


O cigarro abandonado, o trago, cada refeição com princípio, meio e fim, carne e feijão, comida de verdade, lanches de frutas, barrinhas, quase nada de café, chimarrão nem pensar, consultas de pré natal, você está muito magra, pode comer à vontade - e ganhei dezessete quilos - uma sogra obstetra que me emprestou um sonar, os batimentos do coração dele ao alcance dos meus ouvidos toda vez que eu achava que tinha parado de se mexer tanto, ou só porque eu queria ouvir mesmo, comprovar que ele estava vivo, que estava ali, que crescia na barriga gigante.


A barriga enorme que eu metia num maiô ridículo para fazer hidroginástica três vezes por semana, que não me impediu de engordar tanto, e perder todas as referências daquele corpo que não mais me pertencia, a barriga que era eu naqueles meses, era com ela que as pessoas conversavam nos elevadores, nos shoppings da metrópole fria, era nela que todo mundo tocava, a barriga era pública, era através dela que eu vivia a gravidez mais demorada do mundo, fazendo tudo certo e sentindo tudo errado, talvez seja essa a grande metáfora da maternidade, num misto de medo e deslumbramento, a gravidez tão desejada, planejada. Ainda assim aquele primeiro pensamento dentro do banheiro "e agora?" - ao ver as duas marquinhas cor de rosa, num final de domingo chuvoso, no último mês do ano, no último ano do século passado. Aquele instante antes de contar para alguém, uma vertigem. Acho que é a coisa mais solitária do mundo.


Quando enfim a gravidez terminou, e um bebê rosado e saudável foi parar nos meus braços, eu ainda tinha a barriga grande, os seios empedrados e a mesma sensação de deslumbramento e medo que me acompanham até hoje, dezoito anos depois, o corpo já recuperado. São outros medos, e outros deslumbramentos, mas ainda me pergunto tantas vezes o mesmo "e agora?"


Talvez porque a única resposta à pergunta do meu filho seja, e já era, desde o distante dia do teste do xixi, a que dei para ele agora:


- Não, não dá para deixar de ser mãe. Nem por um pouquinho


Trabalho como médica, me traduzo como escritora. Saí de um lugar para onde não pretendo voltar. Agora sigo os desvios, marcando com pétalas e palavras meus descaminhos. O amor errado mais certo do mundo (Concha Editora, 2017) é meu livro de estreia.

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