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(Duas) breves narrativas de um verão qualquer

Atualizado: 15 de mar. de 2020

#1 Ruído branco


Dez para as sete e eu ignoro os gritos do relógio. Finjo voltar a dormir. De olhos fechados, invento um fim para o sonho. Dizem que são sempre assim, os sonhos, invenções nascidas pouco antes do acordar. Sonho ou invento que sonho com uma praia. Dois corpos deitados na beira. Embolados. Distantes do fundo onde me encontro. Estou na água amornada de sol, submersa até a boca. Os dedos dos pés cavando buracos na densidade da areia fina. Cabelos longos, no sonho sempre tenho cabelos longos, cabelos longos flutuam na superfície feito tentáculos de mãe-d’água. Se eles se levantassem, se dissolvessem o emaranhado de pele e membros que eu avisto no seco, se ousassem entrar no meu mar, eu os queimaria vivos. Um peixe salta diante dos meus olhos. Estico a mão num movimento moroso impossível de alcançá-lo. De repente, um peso no estômago e tudo assume um ruído branco. Não vejo a onda me engolir. O calor que me continha se transforma em vazio. E um enorme rabo de baleia* me joga para fora das cobertas. Sete e trinta quando ele me descobre de supetão. Colcha e lençol jogados aos meus pés. Desligo o rádio com um tapa. Café nenhum é capaz de me salvar desse dia.


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#2 Gota d’água


A sensação de ser uma garota deitada de bruços sob o céu de janeiro, o corpo coberto de pequenas gotas é algo difícil de lembrar. Como era sentir calor sem sofrer. Estar aqui e agora, ter treze anos, beber o suco de melão com laranja fingindo gostar de melão. Ter prazer em coisas bestas como mastigar o gelo. Não me preocupar com o que fazer com a rodela de laranja encaixada na borda, não antes de esvaziar o copo. Ser feliz mesmo com as espinhas no rosto, com o peito que não enche o biquíni emprestado. Sentir a palha da esteira amaciada de um jeito que não pinica, diferente das outras experimentadas. Assistir enquanto as amigas jogam Marco Polo. Rir quando elas riem, rir da piada em inglês. Como se um período semanal na escola pública pudesse acompanhar os anos de CCAA de qualquer uma delas, mesmo a pequena. Perseguindo com a cabeça a sombra das palmeiras ao longo da tarde inteira de forma a manter o corpo sob o sol. Torcer pela simetria da marca do biquíni. Sorrir quando a água fria da piscina espirra nas minhas pernas quentes. A piscina imensa da vizinha da tia rica. Perceber, pela primeira vez, que talvez a tia não seja rica. O lanche será servido nas mesas com guarda-sol às seis, estilo revista Caras. Assistir as meninas saírem da água, uma a uma. Ver a mais nova escorregar em câmera lenta, a mancha vermelha se abrindo em torno da escada de aço. Então a lembrança se torna fácil. Pulo na piscina. Puxo a criança para a borda com força. Meus dedos marcados na brancura dos braços dela. Procuro o corte entre os gritos, nada demais. Encho uma toalha branca com o gelo dos copos, pressiono o pequeno corte na testa da priminha. Tento acalmar as outras. Omito a origem da intimidade com sangue. Ninguém notou minha ausência na água. A mãe da vizinha da tia rica quer saber o que aconteceu com a toalha. A testa da priminha está bem, são os braços que me preocupam. Olho para cima, o sol oculto por nuvens. Espero o momento mais adequado para pedir emprestado o dinheiro da condução.


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* referência ao poema e livro homônimo de Alice Sant'Anna (Cosac Naif, 2013).


Sobre Ju Blasina:

Nascida em Porto Alegre, crescida em Rio Grande, Ju Blasina é poeta e feminista. Cursou biologia e letras pela FURG. Publica em e-zines e jornais de sua região desde 2009. Lançou dois e-books independentes (2010 e 2014) e seu primeiro livro, 8 horas por dia, pela Concha editora em 2017.

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