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Ensaio fúnebre

Um cemitério.


(Entram dois coveiros. Os homens são negros, um deles é velho demais para estar trabalhando naquelas condições e ambos usam uniformes e máscaras surrados que sufocam por inteiro seus corpos.)


- Bom dia, companheiro!


- Bom dia, mestre!


- Dia longo pela frente?


- E quando o dia não é longo ultimamente?


- Que beleza. Nada como começar o dia assim... encerrando os dias dos outros.


- Pois é, nem me fala. A patroa anda morrendo de medo dessa merda.


- Lá em casa é o mesmo drama, a velha ainda tá precisando sair pra continuar as faxinas.


- É foda.


- É.


- E hoje o espetáculo tem plateia. Olha lá.


- Mas não morreu de vírus?


- Morreu, mas vai dizer isso pra mulher! Fez um escarcéu logo cedo, disse que não queria saber, que ia ficar pra ver e pronto. Essa gente é foda, faz o que quer, quando quer, do jeito que quer. Só porque tem dinheiro.


- E como tu sabe?


- Olha pra ela.


- Verdade.


- E aposto que tem culpa no cartório.


- Não duvido, o que tem de gente enterrando a família depois de matar... devia é ser crime.


- É aquela coisa né. Quem faz a lei, faz pros outros.


- Verdade, mas, da cova pra lá, a lei é outra.


- Que seja, aí já não me serve mais. Do que adianta a justiça se ela sempre chega atrasada?


- É assim que as coisas são, sempre foi assim.


- É, talvez. Mas eu esperava mais, sabe?


- Sei.


- Não tenho nem dormido direito, sabe?


- Sei.


- Essa coisa de me arriscar e arriscar minha família pra enterrar os mortos dos outros me enche de…


- A gente precisa ir lá, companheiro, vai começar.


(Os coveiros silenciam e vão em busca do caixão. Uma mulher dá mais alguns passos tímidos para a frente, tentando assistir ao enterro mais de perto. Ela é branca, jovem demais para estar chorando sozinha em um cemitério pela manhã e usa roupas (e máscara) de grife que sufocam por inteiro seu corpo.)


Não entendo. Como não? Foi tu que matou. Não matei! Matou. Eu não tinha como saber. Sua mãe tem mais de 60 (aliás, tu ao menos lembra quantos anos tua mãe tem? Tinha?), grupo de risco. E daí? Muita gente saiu ilesa, por que logo eu? Tu sabia que alguém ia pegar, apartamento fechado, muito tempo confinado, seus colegas nunca se cuidaram, e era óbvio que ninguém usaria máscara (não se pode beber e beijar de máscara, certo? Foi tu que brincou, lembra?). Mesmo assim, por que eu? Foi azar, poderia ser com qualquer outro e foi comigo, azar. Azar, talvez, mas foi tu que decidiu apostar e a aposta era alta, tu sabia. Não sabia, eu não podia imaginar. Tu passa tempo suficiente nas redes sociais pra saber de tudo. E o que tem a ver? #Ficaemcasa, foi tu que compartilhou. Todo mundo compartilhou. E pelo jeito nem todo mundo ficou em casa. Eu não queria que nada disso acontecesse. Talvez quisesse. Porra, como tu pode dizer isso? Porra, como tu pode pensar nisso? Eu só estou triste. Quem sabe satisfeita. Tu é doente? Quem sabe sejamos. Tu não pode me culpar por isso… Não sou eu que estou te culpando. Eu estou com raiva. Muita raiva. O problema é que a gente nunca espera que uma coisa dessas vai acontecer com a gente, sabe? Sei, sei bem. Tu viu a cara do papai? Ele está acabado. Como vai ser pra encarar ele de agora em diante? Só vocês dois amarrados um ao outro naquele apartamento. Em silêncio. Em desgosto. O apartamento vai parecer pequeno. Apertado demais com uma pessoa a menos. Espaço de sobra assusta. Vais ter que aprender a se esconder. Ele mal conversou comigo desde então. Talvez ele não consiga mais conversar contigo de agora em diante. Eu não tenho culpa. Talvez ele discorde. Eles nunca saíram de casa, é verdade. Tinham medo. Do quê? Disso. Eu nunca tinha me dado conta. Do quê? Disso. A vida acaba. E se tiver algo mais? E faz diferença? Eu esperava mais. Tu nunca esperou mais. Como assim? Tu nunca esperou mais, tu nunca buscou mais, tu nunca desejou mais. E tudo acaba assim? É o que parece. E minha mãe? O que tem ela? Esperou mais? Buscou mais? Desejou mais? Talvez não tenhas dado a chance pra ela. Ela teve uma vida antes de mim. Sim, uma vida antes de ti. E depois? Ela te serviu e morreu (por vontade tua). Não tive culpa. Não sou eu que estou dizendo. Fico pensando que não sei nada sobre ela. É verdade. Fico pensando que ela é uma pessoa. Era. É como se eu vivesse com dois estranhos. Agora um. Por uma vida. Sendo sustentada, mimada, idolatrada. Sem nem ao menos saber ao certo. Sem nem ao menos se perguntar. Com quem estou vivendo. E acabou. Acabou, tu está enterrando ela. E agora? Tu volta pra casa, pro quarto, pra cama. E? E enterra, bem no fundo, o enterro da tua mãe. É isso? É…


(Sai a jovem. Os coveiros se entreolham e voltam a conversar.)


- Ela tava falando sozinha?


- É, acho que sim.


- Coitada, chorando bastante, não é?


- É, acho que sim.


- Isso mexe com a gente.


- É, acho que sim…


- Até quando?


- Eu também gostaria de saber.


(Silenciam por um bom tempo. O espectador supõe suspiros profundos.)


- Meu menino faz anos hoje, sabia?


- Verdade?


- Verdade.


- Quantos anos?


- Três.


- Poxa, mas já?


- Sim, tá todo faceiro, anda cheio de palavras, já nem cabem mais na boca.


- Mesmo?


- Mesmo. O guri é ligado no 220, cheio de vida. A gente chega tarde, cansado, acabado às vezes, mas ele não descansa enquanto não brincar com a gente. É como se criasse um mundo inteiro durante o dia, só esperando a gente chegar pra compartilhar com o papai e com a mamãe. Ele dá conta de inventar de tudo um pouco. E como se diverte…


- E hoje? Tem festinha?


- E tu acha que o guri perdoa? Tem que ter. Ele quer bolo, vela, parabéns, tudo que tem direito.


- Tá certo. E vai dar tempo?


- É meio corrido. Mas tem que dar. A gente se reveza, apronta tudo e segura as pontas até o guri esgotar toda energia e cair de sono.


- Puxado.


- Puxado. Mas tem que ser. Ele sente muita falta da gente, sabe?


- Sei.


- E anda preocupado. Ele não entende direito o que tá acontecendo, é claro. Mas ele não é bobo, sabe?


- Sei.


- Ele sempre nos espera, cuidando a janela. Eu juro por tudo que, quando a gente sai de casa, eu enxergo medo nos olhinhos do guri e, quando eu finalmente chego do trabalho e pego ele no colo, isso me enche de…


- A gente precisa ir lá, companheiro, já tá na hora do próximo.


(Os coveiros silenciam e vão em busca de um próximo caixão. Dessa vez, ninguém assiste ao enterro.)


Lucas Zafalon Garcia (1998) nasceu em Rio Grande (RS) e sofre, desde a epigênese da infância, de verborragias – pensa em renovar o homem usando borboletas, pois sabe que um galo sozinho não tece uma manhã. Formou-se, portanto, como consequência direta dessa condição, em Letras Português-Inglês (FURG) e atualmente é mestrando em Letras (UFRGS), na área de Estudos de Literatura, em que almeja estudar a literatura em tensão com a teoria social, a filosofia e a psicanálise. Publicou crônicas esparsas no falecido Jornal Agora e é autor do livro de contos Esta nossa tautologia, a ser publicado pela Concha Editora em 2021. Além disso, vez ou outra, compartilha alguns rascunhos poéticos despretensiosos em seu perfil do Instagram (@luczafalon).


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