Do nada, me volta à cabeça 'eu aqui louca de dor e tu me ofereces um bolinho'. Rose não sabe quem somos, não sabe se são mesmo quatro as horas que meu relógio aponta. Não sabe em que ano estamos. Duvida que eu saiba. 'Todo mundo mente um pouco', ela diz, 'eu minto muito'.
‘Tu és mais jovem que eu, mais inteligente, mais bonita’, ela diz, ‘tu sabes das coisas’. E me pede a verdade. Eu não sei, Rose, me desculpa. Ela diz que eu sei, sim. E a boca se abre num tipo de sorriso: os dentes à mostra sem que os olhos acompanhem. A sobrancelha rala segue pesada, uma ruga mais funda que as outras cortando a testa em metades assimétricas. O rosto em desacordo emoldurado por fios castanhos que escapam de um rabo-de-cavalo meio caído. É como ver um rosto de vó numa peruca de neta.
Eu sei que ela se chama Rose por causa dos cigarros. Encontrei documentos junto ao maço de Fox no bolso de fora da mochila, procurei a pedido dela. Perguntou se eu fumo. Não fumo, detesto fumaça. ‘Eu detesto tudo isso’, ela diz. Concordo com a cabeça. Sinto vontade de beber. Rose tosse, uma tosse feia, de cachorro. Ofereço água, ela aceita. Pego um copo descartável. Rose pergunta pra quê. Quer beber no meu gargalo. Sirvo o copo e entrego a ela.
Rose diz que me ama, que vai para a minha casa comigo, que não tem essa de marido e filho, diz que vai, sim. Solta a fumaça contra o vento, aperta os olhos enquanto a fumaça passa. Depois me fita em silêncio. Sacode a cabeça de um jeito estranho, faz um círculo com o queixo no ar. Um sabiá pousa aos pés do eucalipto centenário sob o qual nos acomodamos, belisca alguma coisa na terra e vai embora. Rose arruma uma garrafa térmica sobre a mesa que eu montei na praça. Move a garrafa azul dois centímetros pra lá, dois centímetros pra cá. O mesmo com as canecas de alumínio. E então diz ‘Não, não, não’. Pergunto do que ela está falando. ‘De ti’, ela diz.
‘Tu voltas pra tua casa e eu fico como? Eu fico aqui, sentada com minhas dores’.
Respiro fundo, não digo nada.
‘Vai, vai logo’, ela cruza os braços, ‘e vê se leva os teus bolinhos’.
Estava tentando me envolver naquilo de algum modo, está certo, mas era mais que isso. Ela queria mais alguma coisa. Uma resposta, talvez, quando não existem respostas. Talvez um simples gesto da minha parte, um toque no braço, quem sabe. Talvez isso fosse o bastante.
Rose pede mais açúcar. Mexe o café, não prova um gole, pede mais café, mais açúcar, mais café, até que o copo cheio entorne na toalha de flores amarelas e ela se zangue comigo. O dia passando e a gente ali, querendo falar de política com quem passa, oferecendo café e escuta. Mas e a ela, quem escuta? A política é uma perda de tempo, ela diz, tudo isso, não resolve nada. ‘A vida é outra coisa, Lu, outra coisa’, mexe o café, toca nos biscoitos, não bebe, não come. ‘Lu é Luciana, não é? Como eu vou saber se é?’, dou de ombros. A essa altura, preciso checar minha identidade. ‘Eu conheci uma Luciana uma vez’ ela diz, ‘ela não era assim, não, não. Aquela lá, já era’. Rose então resolve me chamar de Carla.
O toque dos sinos anuncia a missa das seis na Catedral de São Pedro, alguns metros atrás do eucalipto. Junto minhas coisas, fecho a mesa. Levo tudo para o carro, exceto a cadeira onde Rose está sentada. Preciso ir. Não posso deixá-la ali.
Ofereço meu braço de apoio. Rose protesta. Então me despeço séria e ela aceita. Se apoia em mim com todo o peso. Manca, retorce o rosto, me xinga, depois se desculpa, ‘Carla, eu sou ruim, Carla, tu és tão boazinha’. Começa a falar do tempo, o rebojo arrastando as nuvens. Para de mancar pelo resto do caminho.
Sento Rose na cadeira no fundo da igreja. Não há lugar nos bancos. Ela segura meu pulso com as duas mãos. Preciso de força para me desvencilhar. Se ela disse algo nesse momento não fui capaz de ouvir.
Na porta, uma mulher me interpela. Quer saber porque fiz aquilo. Ela conhece Rose, sempre atrapalha a missa, incomoda as boas senhoras, ‘elas vêm cedo garantir lugar’. A mulher usa um avental escrito ‘pague o dízimo’. Pergunto se quer que devolva Rose à praça. Falo do frio, da dor, da escuridão. Dou um jeito de meter ‘casa de deus’ numa frase. A mulher se desculpa, em nome do Senhor. Fecho os olhos, faço o sinal da cruz. Deixo Rose entre os santos e vou para casa abrir um vinho.
Afinal de contas, o que ela poderia esperar de alguém como eu?
NOTA DA AUTORA: o quarto parágrafo e a última frase foram extraídos do conto ‘O lance’, de Raymond Carver (1974).
Sobre Ju Blasina
Nascida em Porto Alegre, crescida em Rio Grande, Ju Blasina é poeta e feminista. Cursou biologia e letras pela FURG. Publica em e-zines e jornais de sua região desde 2009. Lançou dois e-books independentes (2010 e 2014) e seu primeiro livro, 8 horas por dia, pela Concha editora em 2017.
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