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Estamos ao vivo

Atualizado: 1 de mar. de 2019

Somos mais velhas e mais gordas pessoalmente. Falamos alto, nossos dentes são tortos, nosso nariz, comprido. Temos orelhas de abano. A raiz do cabelo dois dedos crescida. Uma mecha branca bem no meio da testa. Somos mais baixas que os números registram. Quebramos os saltos. Gostamos de enroscar os dedos nos pelos do sovaco. Bebemos destilados em canecas plásticas, bolamos nosso fumo. Nossas barrigas abaúlam as calças, sem gravidez.


Eu sei que você não me perguntou. Você prefere a mulher filtrada. Decepada num close de buceta. Nua e lisa, infantilizada. A mulher solitária, bebendo champanhe, de lingerie e rímel. À prova d’água. A que aguenta cinco dedos, um punho inteiro. Até o cotovelo. Sorrindo. A do gang bang, a do pompoar. A mulher plana, em 2D. Feita de pixels, silicone e bulimia.


Ao vivo, somos barulhentas. Comemos de boca aberta, uma garfada quente direto na goela. Metemos política, religião, aborto e o pau torto do ex num mesmo assunto. Saímos das roupas com mais facilidade do que entramos. Ao vivo temos cores, volumes e sons. Nosso cheiro é forte, nossos dedos, grossos. Joelhos escurecidos pelo chão, o tapete, o friso do parquê. Resquícios do tempo em que andávamos de quatro. Não passamos nada para clarear as juntas, nada para amenizar o vinco da testa. Ou a dor de ter uma criança atravessando a vagina.


Ao vivo somos profundas. Certo que não dá pé, não para você. Se quiser, traga uma pá. Cave um buraco. Volte sete palmos depois, pequeno, sujo e ignorante. Venha. Estaremos no mesmo lugar. Para onde você olha e nada vê. Será nossa primeira vez. Seja gentil. Se você puder, se você ousar, capaz de se apaixonar por nós. A recíproca não será verdadeira. Estou cansada e o meu copo, meio vazio. Deixe a garrafa aí. Gostamos de nos servir sozinhas. Você, desocupa a cabeceira e senta mais para lá. Mais para lá. Um pouco mais. Senta e escuta. É a nossa vez de falar.


Contamos antigas histórias. Rimos, choramos. Gritamos e, então, silêncio. Nossos olhos arregalados, incrédulos, vermelhos. O roxo cobrindo a pele, a obstrução das vias aéreas, o desespero. Você não reage. Você sabe o que está acontecendo e não se move. Você e seu olhar de peixe morto. Os braços cruzados, os lábios esticados num meio sorrir. Diz não lembrar de nos servir caroço. Numa bandeja de prata. Caroço com especiarias. Caroço doce. Caroço entre as folhas de rúcula. Você diz que lamenta com uma ereção nas calças.


Por isso, uma vez fechado o punho, uma vez encontrada a quina para a manobra de Heimlich a nos devolver o fôlego, não vamos nos desculpar. Quando o frio da prata te atingir no pescoço, não vamos nos desculpar. Temos que amolar as facas, lidar com o vermelho nas paredes. O segredo para essas manchas é água oxigenada, amaciante de carne, vinagre, talvez limão. É uma receita controversa. Precisamos unificá-la. Não agora. Há três sacos esperando o arraste para a lixeira, oito quadras acima. Quem sabe um dia.


Sobre Ju Blasina Nascida em Porto Alegre, crescida em Rio Grande, Ju Blasina é poeta e feminista. Cursou biologia e letras pela FURG. Publica em e-zines e jornais de sua região desde 2009. Lançou dois e-books independentes (2010 e 2014) e seu primeiro livro, 8 horas por dia, pela Concha editora em 2017.

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