Eu não sabia tomar banho sozinha aos cinco anos. Minha mãe trabalhava até tarde, tão tarde que eu dormia na casa de uma vizinha cinco vezes por semana. Era uma senhora a vizinha, uma senhora não sei de que idade. Usava cabelos curtos e óculos enormes, roupas largas e floridas. Ela me lembrava a avó de alguém, não a minha. O que pode significar qualquer coisa num intervalo de cinquenta anos no calendário de alguém aos cinco.
Eu não sabia no que a minha mãe trabalhava. Ao cinco anos não se sabe muita coisa desse mundo de adultos. Ela pagava para que a vizinha me deixasse deitar no sofá de dois lugares e virar para o lado enquanto o sono não vinha e a família, dois velhos num sofá de três, assistia a novela das oito. Às vezes eu fingia dormir e me virava para a tela. Abria entre os cílios uma pequenina fresta que eu julgava invisível à vizinha na penumbra da sala. Mas em algum momento, esquecida de onde estava, eu ria e ela gritava para que eu me virasse para o canto, "para o canto, menina, que tua mãe não te quer vendo isso". E eu me virava e assim ficava, acordada no escuro, testando a resistências dos botões no capitonê do sofazinho enquanto alguém dançava dentro da televisão.
Cedo da manhã, a vizinha me acordava puxando o lençol de baixo. Era hora de arrumar a sala e eu, para não atrapalhar, ia à janela calcular rotas de fuga pelo parapeito do terceiro andar. Às vezes, via a menina da janela da frente. Ela sorria e me acenava e eu não podia responder porque a vizinha dizia que minha mãe não ia gostar de saber que eu abanava para "esse tipo de gente". E que a fada branca que a tudo via voaria pelos prédios até os ouvidos de minha mãe antes que eu pudesse pedir desculpas. E, na próxima vez, a fada branca chamaria o gigante comedor de gente. Então eu aprendi a embaçar o vidro e desenhar avisos para a menina da janela da frente, embora eu soubesse, no fundo do meu coração, que ela era gente do mesmo tipo que eu e que o gigante, se viesse, me comeria primeiro.
Depois disso, a vizinha servia leite morno na caneca de vaquinha que eu trouxera de casa e me alcançava a calda de chocolate da prateleira das coisas de comer que minha mãe abastecia. Eu apertava o pote com as duas mãos e ia erguendo enquanto o fio crescia e tingia o leite de um marrom brilhoso e caramelado, mas a vizinha confiscava o pote no momento em que ela achava bom.
Quando fazia muito calor, do jeito que faz no auge do verão de Porto Alegre ー quarenta graus num apartamento de janelas fechadas ー e o meu cabelo grudava no pescoço mesmo parada olhando para o teto, a vizinha perguntava se eu queria tomar um banho no meio da madrugada, outro, antes de ir para casa. Eu nunca queria. A vizinha me arrastava para o banheiro, mandava que eu tirasse a roupa e entrasse debaixo do chuveiro, sem chorar. Eu não obedecia. A água era muito fria e o sabonete tinha cheiro de gaveta. Ela me esfregava com força e eu não me mexia. Nos cabelos, o shampoo de camomila que minha mãe comprava e que naquela época ardia os olhos. É engraçado que hoje o rótulo traga estampado dentro de um balão vermelho a frase "chega de lágrimas" como eu ouvia há trinta anos. Só no fim do banho que eu conseguia abrir os olhos novamente. E via: na porta entreaberta do banheiro, parado, o marido da vizinha.
Se eu contasse alguma dessas coisas, a fada branca que a tudo via chamaria com um silvo seu amigo gigante que comeria a minha mãe dentro de um pão. Um dia, a hora dela me buscar se aproximava e eu ainda não tinha conseguido parar de chorar. A vizinha me fazia um rabo-de-cavalo e eu fingia ser essa a razão. Não o gigante. Não o ardido. Então ela me pegou dos ombros, me virou de frente para ela, pôs a mão no meu queixo e disse que se eu fosse uma boa menina, ela mandaria a fada deixar um presente debaixo da minha cama. Uma boneca de cabelos loiros iguais aos meus ー crente daquele poder, me agarrei à boneca hipotética sem pestanejar.
Ao chegar em casa, mal minha mãe abriu a porta eu corri para o quarto. Entrei debaixo da cama com o corpo inteiro, escrutinei cada peça solta do parquê, cada vão entre as tábuas do estrado e o inverso do colchão. E chorei, chorei muito, chorei e vomitei o azedume do leite da caneca de vaquinha no meu estômago. Minha mãe se aproximou assustada, me puxou daquele lugar estreito. Ficamos por tanto tempo abraçadas que o meu choro pareceu se esgotar. Ela soltou o elástico que prendia os meus cabelos repuxados e a tensão no meu couro cabeludo aliviou num instante. Eu não notei o quanto aquilo doía até parar de doer. E eu falei, falei tudo o que não podia falar. Quando minha mãe chorou eu pensei ser minha a culpa: de tanto acumular lágrima, precisava de mais olhos de vazar. Nunca mais acreditei em fadas ou gigantes. A boneca chegou tarde, embalada numa caixa da estrela.
Sobre Ju Blasina: Nascida em Porto Alegre, crescida em Rio Grande, Ju Blasina é poeta e feminista. Cursou biologia e letras pela FURG. Publica em e-zines e jornais de sua região desde 2009. Lançou dois e-books independentes (2010 e 2014) e seu primeiro livro, 8 horas por dia, pela Concha editora em 2017.
Que texto, Ju! Fez-se sentir fundo aqui dentro. Parabéns!