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Flores para si

- Lembro de uma brincadeira que eu e meu irmão fazíamos, que era olhar fixamente para uma pessoa sem fitar seus olhos - a gente se concentrava na testa. Depois de um tempo, a criatura começava a se coçar, olhava para os lados, ficava toda desconfortável. É assim que eu me sinto com ele. Como se ele estivesse sempre olhando para um ponto acima. Ou como se tivesse alguém do meu lado, que é igual a mim e não sou eu. É ela. Entende?


Enquanto minha amiga fala, eu ainda estou pensando em "fitar". Não leio essa palavra há muitos anos, e acho que nunca vi alguém usar na vida real. Faço que sim com a cabeça, tento voltar a atenção para o que ela está dizendo.


- Ele nunca pergunta de mim, das minhas coisas, do meu dia. É sempre ele em relação a mim, como se eu não existisse fora do seu alcance, ou da sua cabeça. Entende? Ela termina todas as frases com entende?- enquanto tenta me explicar algo que parece bastante confuso: o homem que ela está namorando, que é apaixonado por ela, que diz que a ama como nunca amou ninguém, gosta de verdade é de uma outra pessoa. Que é ela.


- É dela que ele gosta, essa outra que tem a minha cara, o meu corpo, a minha voz - mas que só existe dentro dele, sabe?


- Mas Sílvia, o jeito como ele te "fita"!


- Não debocha, Juliana. Ele olha é através de mim, para um plano de fundo onde ele enxerga esta mulher ideal. Que não sou eu. É ela. Ele olha é para a minha testa, enquanto me fala dele, de como ele se sente com ela. De como ele a quer. De como ela é tudo que ele sempre desejou. Acho que essa mulher nunca fez merda na vida, metafórica e literalmente falando. Entende?


Penso que ela está exagerando, o cara adora ela. Literal e metaforicamente.


- Ele é um querido, Silvia. Te trouxe flores ontem.


- Ele trouxe flores para ela. Eu sou alérgica. Semana passada ele me deu um livro. Para ela, porque imaginou que era o que ela gostaria de ler. Agora, ele não larga o tal do livro. Porque não era nem para mim - que não gosto de ler, nem para ela. Era para ele. Aliás, ela é ele, no fim das contas. É isso, ela é ele. Entende?


- Hã?


- A mulher que ele diz que ama tem a minha aparência, mas é um personagem. Nascido da fantasia e do desejo dele, projetados em mim. Ele não me conhece, Juliana. Não me sabe. Nem me vê. Só vê a ela, a mulher perfeita, o umbigo dele, que, aliás, é muito feio.


Fico pensando se não é assim com todo mundo. Egoístas que somos, será que o que a gente procura no outro é sempre um reflexo?


Pode ser. Não deveria ser.


Acho que poucos sabem amar sem projeção, quase ninguém. Olhando no preto do olho, mergulhando no mistério do outro, sem medo de descobrir também o defeito.


Sem inventar tanto.


O nosso amor a gente inventa para se distrair, cantava o poeta. Pois então...


- Será que ele - o amor - não passa mesmo de uma mentira que a nossa vaidade quer?


- Sei lá. Só sei que nunca me senti tão sozinha, amiga. Tão invisível. E sabe o que é pior? É que eu não consigo sequer gostar dela. Nem um pouco.


Eu entendo.


Trabalho como médica, me traduzo como escritora. Saí de um lugar para onde não pretendo voltar. Agora sigo os desvios, marcando com pétalas e palavras meus descaminhos. O amor errado mais certo do mundo (Concha Editora, 2017) é meu livro de estreia.

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