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Imprecisão

"Não se navegam corações como os outros mares deste mundo."


Não sei onde li isso, foi num livro mas anotei sem a referência, agora a frase me faz lembrar de Pessoa e seu navegar é preciso, viver não é preciso. E não é, mesmo.


Não tem bússola, manual ou bula que dê jeito nessa mania que a vida tem de nos virar do avesso, de andar em círculos, de não andar, de nos mandar tempestades e desafios sem aviso prévio, de nos trazer e levar pessoas, presentes, ausências.


Ainda que o vento sopre a favor, ainda que agarremos o timão com toda a força, o olhar fixo e firme no horizonte - não adianta. Vamos sempre ser ou o barquinho no meio do oceano, à deriva, ou o próprio oceano, imenso e bravio, extraordinário e profundo, sujeito às mudanças de fase da lua.


E se o oceano e a vida são assim imprevisíveis, o coração humano é ainda mais. Gente é a coisa mais acidental que existe. Não tem fórmula única, cada caso é um caso, e é cada caso de botar os cabelos em pé, muitas vezes. Mas, como disse o poeta Terêncio (esse eu pesquisei), nada do que é humano me é estranho. Ou deveria ser.


Nós todos, sem exceção, contemos em nossas caixas de surpresa as infinitas possibilidades de sermos esquisitos e inéditos, cada um à sua maneira. Somos singulares e muitos, e para tal imensidão não existe um só mapa.


O amor não tem mapa, é sempre terreno desconhecido, continente estrangeiro, ainda que vinte anos depois do sim, no cotidiano das escovas de dente e além.


O que hoje é promessa de eternidade, amanhã pode ser a briga pelo Neruda que você não leu, pela louça que não lavou, as flores que não deu - as sobras daquilo que chamamos lar.


Aliás, para que as promessas são feitas, se não para serem quebradas? Não existe nada mais falso que uma promessa verdadeira, ainda que bem intencionada.


Nenhuma jura sobrevive à passagem do tempo sem se transformar em outra coisa. E nenhuma pessoa, tampouco. Nem poderia. Somos todos sujeitos e estamos sujeitos ao tempo, ao vento, às intempéries e às calmarias. Somos as pedras moldadas pelas ondas que rebentam na praia. Somos as ondas e a praia, que muda a cada estação, verão e inverno, arenosa, úmida. Erosiva. Somos impermanentes, como os castelos da menina de tranças, quebrados e belos, como as conchas que ela guarda no balde, inavegáveis muitas vezes, estreitos e largos, e gelados e rasos, e cheios de correntes e nunca, nunca mesmo, o mesmo mar.


Somos todos, sem exceção, travessia. E o outro é sempre descoberta. Um oceano repleto de armadilhas, um fundo de mar povoado de mistérios.


Numa navegação sem cartas que é tão bonita porque aleatória. E infinita - enquanto dura...


Trabalho como médica, me traduzo como escritora. Saí de um lugar para onde não pretendo voltar. Agora sigo os desvios, marcando com pétalas e palavras meus descaminhos. O amor errado mais certo do mundo (Concha Editora, 2017) é meu livro de estreia.

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