Por Andréia Pires
É a Biblioteca Rio-Grandense, um museu incrível de livros em Rio Grande, mas bem podia ser uma máquina do tempo daquelas de filme, uma das portas de El Ministerio del Tiempo se abrindo no meio do século 19 no extremo sul do Brasil para me mostrar porque algumas coisas – instituições e costumes – são como são na minha cidade e de que forma encontram seus próprios meios para contar de si e para durar.
Visitei esse lugar no início do mês e foi mais ou menos assim:
4 de julho de 2019. Botei na bolsa um exemplar de cada título publicado pela Concha, um comprovante de residência e documento de identidade, mais um bloco de anotações e caneta e fui, bem determinada, até a Biblioteca Rio-Grandense. No bloco de notas do celular uma lista de perguntas que vinha editando há meses. Tinha três objetivos: doar os livros para o acervo, me associar e conhecer o prédio e a rotina da biblioteca para fazer uma matéria depois. Quase consegui tudo.
Fui atendida pelo administrador Marco Antônio Cunha, que me explicou o que cabia ao associado e orientou a voltar outro dia, outro horário, para conversar com a bibliotecária e combinar a visita. Era pouco mais de 16h e não tinha ninguém no salão de leitura. Dei uma volta, fiz algumas fotos, assuntei. Enquanto Marco termina meu cadastro de sócia, uma senhora e uma menina chegam juntas ao balcão. Georgina traz a neta Maria Stefany à biblioteca Monteiro Lobato. A sala infantil, que é gerida pela prefeitura e funciona há mais de 50 anos no prédio da Biblioteca Rio-Grandense, estava fechada naquela tarde, dizia o cartaz na porta. A senhora me conta que as duas são frequentadoras das bibliotecas e entrega ao atendente o romance que traz na mão. Ficam de voltar outro dia. Eu também.
Repenso se devo voltar, se devo fazer a matéria que prometi ano passado ao Ronaldo Gerundo, escritor e atual secretário da instituição. Compromisso que reforcei no fim de junho, no Encontro de Escritores de Rio Grande, quando o ouvi novamente falar das dificuldades que a Biblioteca Rio-Grandense enfrenta, do distanciamento que a comunidade rio-grandina em geral vem tendo da entidade, e principalmente do pouco engajamento dos escritores daqui com tudo o que ela representa. Repenso a minha história com essa biblioteca. Penso no projeto Concha Editora e em tooooodas as conexões que já existem e nas que podem, precisam, ser feitas para o futuro, porque significam contribuir com a arte e a cultura locais e para além.
Os propósitos não são afins? Muito.
Resolvo que devo. Que volto.
8 de julho de 2019. Segunda-feira de manhã, depois de conversar com estudantes de terceiro ano do ensino médio do Colégio São Pedro sobre escrita criativa, literatura, a Concha – é possível ser escritora e viver profissionalmente da escrita em Rio Grande? Dou a minha versão... – volto à biblioteca. Escolho um caminho bem velho, pelas primeiras ruas da cidade, de pedras irregulares, desemboco na beira do cais, passando entre Alfândega e Câmara do Comércio. Contorno a hidroviária, cruzo o mercado. Faz um sol tão impressionante que fotografo tudo: as placas, as docas, os pássaros, as pichações, o novo visual do Largo Barbosa Coelho, a entrada da biblioteca.
Quando me dou conta, a matéria já ia se compondo em mim, mas não ao modo convencional. Ia assim, narrada do meu modo, no meu tom. De voz. Sou eu chegando na biblioteca muito respeitosamente, pedindo licença para entrar, conhecer e espalhar o que a maioria dos rio-grandinos, em tese, já se está farta de saber, ver e ouvir (em terceira pessoa, fontes oficiais e apelos por auxílio financeiro e consciência cidadã), mas agora de outro ângulo na linha do tempo, do meu. Sou eu, num ponto de 2019, redizendo o óbvio e talvez trazendo novidades para quem nunca se inteirou do assunto.
Chego perto das 11h. A bibliotecária está lá, aponta Marco. Atrás do balcão do salão de leitura. Finalmente, pela primeira vez tenho a chance de um passeio pelas dependências da Biblioteca Rio-Grandense.
Simone me recebe com sorriso. Falo que pretendo fazer uma matéria, quero saber de acervo, espaço físico, projetos, parcerias, atendimento, como a entidade se mantém, quem são os frequentadores, como é a história dela com a biblioteca, tudo. Posso gravar?
Não. – ela prefere.
Nem se eu tivesse dez pares de mãos conseguiria registrar o tanto de informação que choveu em mim a partir daquele momento. Fiz o meu melhor, guardei como pude. Desculpa, desde já, se deixar algo essencial por contar. Recomendo que vá ver por si. Mesmo.
ESTRUTURA, ACERVO, EXPECTATIVAS: A BIBLIOTECA RIO-GRANDENSE PERMANECE
Simone Maria Dutra Grafulha é bibliotecária há 24 anos e servidora pública municipal, cedida à Biblioteca Rio-Grandense, onde atua ininterruptamente há 11. “Já tive oportunidade de trabalhar em outros lugares, mas sempre trabalhei aqui. Me sinto feliz”, diz. E me informa que atualmente a instituição conta com três profissionais para atender ao público – o administrador, a servente de limpeza, que vai três vezes por semana, e ela, além da colaboração de estagiários da universidade e de voluntários. Nos anos 1980, quando a história de Simone com a biblioteca começou, a equipe era maior.
Segundo a bibliotecária, apenas parte do acervo já está informatizado. Consta no sistema o que está localizado no térreo, no primeiro e no segundo andares, 70% do que há no terceiro andar, e quase todos os jornais do quarto andar. Somente funcionários acessam a base de dados para gerir o catálogo e orientar consultas. No momento, não há previsão de oferta aos usuários de serviço de consulta digital ao acervo. O acesso às obras por empréstimo é restrito a sócios. Visitantes podem fazer consulta local e solicitar serviços de reprodução e digitalização de materiais mediante pagamento de taxas de uso.
Estudantes concurseiros, universitários e pesquisadores são o público mais assíduo à biblioteca. A visita de pesquisadores estrangeiros é comum. Dependendo da demanda das escolas da rede básica, a procura de estudantes por títulos e principalmente por informações sobre a cidade aumenta. Pelo menos dois eventos literários são realizados anualmente no salão de leitura, em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e a Prefeitura Municipal.
O trabalho de catalogação é detalhado, lento e pode ser surpreendente. “Há cinco anos estou trabalhando nas gavetas e tenho encontrado coisas bem raras”, conta a bibliotecária. Da sala em que estamos, do Serviço de Catalogação, vejo a Sala de Pesquisa Assis Brasil. Simone me mostra as pastas que ordenam as coleções de jornais – são coleções completas de periódicos como Echo do Sul, Arcádia, O Artista... – e em seguida me apresenta as dependências do Acervo Geral e me leva às salas especializadas.
Vamos uma a uma: Sala Almirante Tamandaré, apadrinhada pela Marinha do Brasil; Sala Abeillard Vaz Dias Barreto, com as obras da biblioteca particular dele, que foi presidente da biblioteca por mais de 13 anos e fundador do Centro de Pesquisa e Estudos Históricos de Rio Grande; Espaço de Imagem e Cinema Aldo Póvoas, dedicado a acervo iconográfico; Sala Fernando Duprat, de obras raras em diversas línguas e mapoteca, composta por mapas, cartas náuticas e atlas da Laguna dos Patos, do Rio Grande do Sul e do Brasil; Sala Silva Paes; e Sala Leon Coutelle Filho. Sei que há outras, mas não as visito. No corredor, passo por um imenso armário de madeira que guarda todo o arquivo sobre a própria biblioteca. Um registro completo da atividade da instituição.
Fico impressionada com todos os detalhes: o mobiliário, os quadros, a organização, os nomes das salas, as raridades, tem história sendo contada em cada canto. Não podia imaginar que houvesse uma sala dedicada a obras de artes náuticas e à Marinha ou uma sala repleta de todas as edições do Diário Oficial do Rio Grande do Sul. Pois tem.
Chamou muito a atenção o fato de que todas as salas homenageiam personalidades com trajetórias ligadas à cidade e à biblioteca, TODOS homens. Confesso que queria demais ver de perto o Corymbo. Isso aconteceu quando chegamos à sala Silva Paes, que guarda obras sobre o Rio Grande do Sul e de autores rio-grandinos. Do lado de fora, à direita da porta da entrada tem um quadro que fez meu coração feminista rodopiar: Revocata Heloisa de Mello, “redatora e proprietária” do Corymbo. Essa mulher (e a irmã também, Julieta de Mello Monteiro) vale uma boa pesquisa por TCCs, dissertações e teses sobre literatura do Rio Grande do Sul pelo tanto de pioneirismo e “pé na porta” que foi por aqui.
A Academia Rio-Grandina de Letras se reúne em uma das salas da Biblioteca Rio-Grandense, sabia? Passamos em frente. E que a primeira turma de Engenharia Industrial da Fundação Cidade do Rio Grande, aka FURG, teve aulas lá, de 1954 a 1960, já sabia? Vi na placa ao fim da escada. E que a biblioteca sediou um curso noturno e gratuito de alfabetização durante 60 anos (inaugurado em 17 de março de 1879), tem noção da contribuição disso para a comunidade local? Descobri dias depois da visita guiada, pesquisando sobre a biblioteca.
Já passa de meio-dia quando descemos pela escadaria principal. De volta à mesa de Simone, começo a recolher minhas coisas para ir embora e antes de me despedir pergunto o que ela pensa sobre o futuro da biblioteca, o que ela imagina que vá acontecer nos próximos anos. “O ideal seria ter uma equipe maior, de umas dez pessoas”, ela diz, franzindo um pouco a testa. Isso poderia colocar em dia toda a catalogação, me explica. “Acho que a biblioteca tem condições de se modernizar, mas precisa de parcerias”, considera. Simone planeja se aposentar no ano que vem e seguir na Biblioteca Rio-Grandense como voluntária.
Passo pelo balcão do atendimento no saguão e me despeço de Marco. Mas não sem antes perguntar da história dele com o lugar. Na exposição “Bibliotheca Rio-Grandense através dos tempos”, na parede do salão de leitura, reconheci Marco em uma foto de no mínimo 20 anos atrás, ele no mesmo posto, só mudou a escrivaninha. Eu não poderia ir embora sem saber.
Qual o sentido da biblioteca para a cidade e para a tua vida?
Pra cidade, é muito importante para o pessoal pesquisar. É uma pena que o rio-grandino não dê muita importância para a nossa biblioteca. Para ter uma ideia, hoje temos em torno de 300 sócios só. É muito pouco para uma instituição que precisa se manter. Se olhar, tanto por fora quanto por dentro, é preciso restauro, restaurar livros, o prédio. Falta muita coisa.
Pra mim, a importância é muito grande. Foi meu primeiro emprego e eu gostei muito de trabalhar aqui, gosto ainda.
Conta um pouco da tua história com a biblioteca?
Vim trabalhar aqui em abril 1984, por indicação de uma senhora que trabalhava na Monteiro Lobato, a dona Zola. Ela tinha muito conhecimento com a minha mãe e a mãe pediu uma força. E quando a mãe pediu uma força, tinha uma pessoa que estava saindo daqui, porque tinha arrumado outro serviço. Ela me indicou, vim, fiz uma entrevista com o presidente, o diretor na época, que era o dr. Silva. E de lá pra cá, já passei por vários presidentes, várias diretorias e continuo aqui ainda.
Enquanto estás aqui, em algum momento da biblioteca a conta fechou, teve sócio e investimento público e privado suficiente?
Não. Sempre foi essa luta, sempre correndo atrás de sócios, de empresas que ajudassem. Teve empresa que nos ajudou, sem dúvida nenhuma. Agora mesmo, no final do ano passado, a biblioteca passou por dificuldades, teve que demitir funcionários, duas amigas minhas, a Ane e a Adriana, porque não tinha condições de continuar mantendo dois funcionários. Uma pena.
Como tu imaginas, nos próximos anos, que a história da biblioteca vá continuar quando tu não trabalhares mais aqui?
Acredito que vá continuar remando. Tomara que não, né. Tomara que consiga mais sócios e mais empresas para ajudar. O que eu vejo hoje, a tendência é diminuir cada vez mais o associado. Hoje tem várias opções, a internet... É uma pena, mas é a realidade.
A REALIDADE DA BIBLIOTECA
A Biblioteca Rio-Grandense fica na rua General Osório, 454, no Centro de Rio Grande; funciona de segunda a sexta, das 9h às 17h, sem fechar ao meio-dia. O prédio, tombado em 2006, tem cinco andares de um acervo que já passa de 500 mil volumes, organizado em salas especializadas, onde se encontram preciosidades como o exemplar mais antigo, Diálogo dos mortos, de Luciano Samósata, obra de 1550 traduzida do grego, e a coleção Flora Brasilis, que além de aqui só tem registro de exemplar na Biblioteca do Rio de Janeiro.
Em 2018 foram catalogadas 6660 obras, 376 pesquisadores e 1387 leitores visitantes foram recebidos. Chegaram 58 sócios e 35 saíram. A gestão da biblioteca é feita por meio de diretoria composta por presidente, vice-presidente, secretário, 1º tesoureiro e 2º tesoureiro e funciona de forma colegiada, com reuniões mensais. Existe ainda um colegiado, explica Ronaldo Gerundo, com sócios remidos beneméritos e grandes beneméritos em pequeno número. Para o secretário, o maior desafio que a entidade enfrenta é atingir o azul contábil. Para mudar de cor das finanças, nos últimos meses a biblioteca intensificou a campanha por novos sócios.
A biblioteca mais antiga do Rio Grande do Sul acaba de completar 173 anos. Começou como Gabinete de Leitura, criado em 1846, por João Barbosa Coelho e outros 21 rapazes. Em 4 de julho de 1878 mudou de razão social, transformou-se em Bibliotheca Rio-Grandense e passou a protagonizar tudo o que a gente já conhece e mais o que está se escondendo no tempo porque cada vez se comenta ou divulga menos. Apesar de disponível ao público em geral, é uma instituição privada, que se mantém através dos serviços de consulta, de vendas de livros, de recursos de editais, e principalmente das mensalidades dos associados e de eventuais colaborações e apoio. A campanha por novos associados segue firme. Para se tornar sócio, é preciso apresentar comprovante de residência e documento de identidade. A mensalidade é R$20. Saiba mais indo até lá, ou pelo e-mail bibliotecariograndense@gmail.com e pelo telefone 53 32312841.
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