Cinco horas de uma tarde fria. Poderia ser qualquer hora entre sete da manhã e oito da noite. É Abril em Rio Grande. O céu num cinza inesgotável desde o amanhecer. São cinco horas. O céu daqui é silencioso nessa época do ano. Ele não me diz nada, por mais que eu pergunte. Ele não quer dizer. Não sei que são cinco horas antes de ver no celular. Ninguém mais usa relógio. Minha bateria está acabando.
A parada da universidade é cheia às cinco horas. Quatro e meia é vazia, cinco e meia é vazia. São cinco horas. Não sei o número da parada. Há dez anos, talvez eu soubesse. Há vinte, com certeza eu sabia. Tiraram o fim da linha. Agora os ônibus circulam sem parar, de modo que um ônibus cheio pode esvaziar no próximo pavilhão ou encher mais e mais até que o atrito dos corpos gere uma faísca capaz de acender o pavio dessa bomba que eu levo encaixada entre as costelas e o diafragma. Sinto falta do fim da linha. Um fim da linha significa um esvaziamento e um recomeço. Subimos e descemos em círculos concêntricos.
Cerca de quinze pessoas esperam o ônibus na mesma parada que eu. Na 'minha parada’, como costumo dizer. Imagino que as quinze pessoas também. Temos em comum essa necessidade de pertencimento. Lembro de um trecho de Marguerite Duras, como era? Não sei ao certo. Mais tarde consulto o livro para citar a próxima frase: ‘Não há nada nos separando das outras pessoas, ainda assim, elas escolhem nos ignorar’.
Perco a noção do tempo. Minha bateria já era. Olho ao redor. É estranho perguntar as horas quando ninguém usa relógio. Não convém perguntar. Cada um consulta o próprio smartphone para toda e qualquer questão. Não existe quase dúvida disponível para se manter um longo debate. Ou uma conversa boba. Vai chover, não vai chover. Em dois segundos o Climatempo nos devolve à solidão.
Eu só queria estar em casa. Consultar O Amante da Duras para concluir esse conto. Nosso ônibus está atrasado. No lugar dele, encosta um carro. O homem ao volante pede informação. Aos gritos. O homem está perdido. Ele não gosta de estar perdido. Ele pede informação como quem descobriu entre nós o paradeiro do mapa roubado. O homem mantém o carro ligado, não tira as mãos do volante. O homem tem pressa de ir sem saber por onde.
Ninguém responde. Ninguém, exceto a moça ao meu lado. Ela se aproxima da janela do carro. Duas tranças largas balançam feito pêndulos quando ela se inclina. A voz gentil.
À esquerda, ela diz, o CAIC é aquele prédio de telhado colorido.
O som do carro anuncia um desfecho simples quando um segundo homem grita:
Direita, é à direita.
E aqui recomeça essa história.
Eu digo não, não é. Repito o gesto da moça, braço esquerdo esticado na altura da cabeça. Só me faltam as tranças. E lá está o prédio colorido. O segundo homem insiste. Ele usa aquele tom convicto que eu não saberia reproduzir. O homem do carro aguarda. Outras três mulheres em pé entre o segundo homem e eu, entram nesse ponto do enredo. Elas reforçam a direção apontada pela primeira de nós.
Estamos certas. Sabemos que estamos certas. Não se trata mais da localização do CAIC, mas de um deslocamento sensorial, do pacto dos homens, do absurdo. À esquerda, à esquerda, falamos todas ao mesmo tempo. Um terceiro homem autoriza nosso protesto com um maneio de cabeça. O segundo se dá por vencido.
Eu estava virado para o outro lado, diz o segundo homem.
Ele não usa o termo ‘errado’ uma única vez. O primeiro homem espera que a direção se confirme. E segue à esquerda deles. Observo o segundo homem. Ele é sem graça para alguém que comporta em si o referencial do mundo.
Para fins dramáticos, o céu escureceu. Uma garoa fina começa a cair. Seco as lentes dos meus óculos na barra da camisa quando um ônibus desponta no plano de fundo. É o nosso. As mulheres se organizam onde estimam que a porta se abrirá. E se abre. Os homens não se mexem. Não antes de começarmos a subir. Então, eles se jogam contra nós, corpos e mochilas cheias de algo que não pesa, mas machuca. Os homens tentam furar o aglomerado das mulheres. Em vão. Somos maioria. Sabemos os caminhos. Hoje, no nosso ônibus, eles não sobem primeiro. Cravo aqui o fim da linha.
Sobre Ju Blasina Nascida em Porto Alegre, crescida em Rio Grande, Ju Blasina é poeta e feminista. Cursou biologia e letras pela FURG. Publica em e-zines e jornais de sua região desde 2009. Lançou dois e-books independentes (2010 e 2014) e seu primeiro livro, 8 horas por dia, pela Concha editora em 2017.
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