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Mulher depois

Atualizado: 26 de ago. de 2019

É por te amar que eu me calo. Ando nas pontas dos pés. Não ouso acordar ninguém. Mantenho a cabeça baixa, a invisibilidade ordenada em minha presença apercebida. Faço minha existência esquecida, por ora. Me pinto cinza, opaca e morna. E me calo. Mesmo os meus olhos, eu calo. Costumávamos falar alto, falar com estranhos, falar com as mãos, rir com todos os dentes. Costumávamos nos tocar. Dormir juntas. Falávamos sobre o que quiséssemos, se quiséssemos. Costumávamos ter espelhos. Algumas raspavam os pelos, outras não. Podíamos ponderar o querer. É inconcebível pra você, eu sei, mas um dia fomos assim. Vestíamos outras cores, outras peles. Ocupávamos os espaços. Nos sabíamos incômodas, nunca fomos ingênuas, lidávamos com a opressão. Resistíamos. Sim, havia medo, mas um medo comedido. O escudo da negativa funcionou por muito tempo. Então começamos a sumir. Dezenas por dia. Éramos encontradas sem roupas, sem grito. Vieram os cartazes, os apitos, os tiros. Passamos a andar em bandos. Eu te levava comigo, em segredo, no lugar mais seguro. Nos acardumávamos por sobrevivência. As bordas eram violentas, só podiam, sangravam. Eram o braço erguido da nossa luta. Outras eram voz, outras o colo, o abraço. Todas com o mesmo valor. Fomos tantas, fomos legião. Ninguém saberia dizer em que momento deixamos de ser. Aconteceu muito rápido. Durou uma era. A medida do tempo é a primeira perdida. Não foi uma surpresa, previmos. Saber não facilita. A aniquilação se deu de dentro pra fora. Uma ferida crescendo sem que se pudesse conter, uma gangrena. Não caímos quando nossos joelhos tocaram o chão. Não caímos quando as crianças tiradas dos nossos braços, quando um zunido ensurdeceu a razão. Caímos antes. Caímos assistindo à queda. Caímos aprendendo a sofrer caladas, no silêncio, na abstração da dor. Eu queria te contar da dor. Queria tornar minha dor tua munição. É um querer inútil, como hoje quase todo é, eu sei. Penso que sei. Nunca estamos preparadas. Esse é o paradoxo da dor. Posso te falar o que vai acontecer. Posso detalhar os caminhos da dor em mim. Ainda que a memória do corpo seja construção. Podes morder um taco de madeira enquanto eu faço contagem regressiva. Cinco, quatro, três. E a dor será outra a cada repetição. Assim como nós. Agarra tua dor, criança. Crava nela tuas unhas, deixa que te tome os sentidos, constrói nela um refúgio. E te guarda. Hiberna como fizeram as mulheres que sofreram antes de ti. Como eu tenho feito desde aquele fatídico dia em dois mil e dezoito. Era outubro, o céu nublado. Nunca superamos. Não convém superar. O que fizemos foi virar sementes. Secas, encolhidas, a vida um segredo à espera de água e sol.


Nascida em Porto Alegre, crescida em Rio Grande, Ju Blasina é poeta e feminista. Cursou biologia e letras pela FURG. Publica em e-zines e jornais de sua região desde 2009. Lançou dois e-books independentes (2010 e 2014) e seu primeiro livro, 8 horas por dia, pela Concha editora em 2017.

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