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O vírus não ensina ninguém

Eu sou meio ranzinza. Pessimista, cética e desconfiada. Ao mesmo tempo, contraditória, nutro uma fé inabalável na capacidade humana de transformar as coisas. E justamente por isso tem me incomodado muito ler tantas mensagens em grupos do whatsapp dizendo que o coronaváirus vai nos tornar melhores, que vai nos ensinar o que é essencial na vida e que – pasmem – deveríamos agradecer ao universo pela incrível oportunidade ofertada. Ah, vão catar coquinho, com o perdão da grosseria. Desde quando uma doença ensina algo a alguém? Desde quando ver cadáveres se empilhando aos milhares todos os dias, enquanto engolimos nosso café da manhã sem açúcar ou qualquer certeza, pode nos trazer algum bem?


Fato é que fomos todos colocados nessa sem o menor aviso e estamos vivendo a maior distopia da nossa geração. Eu lembro de ler, na ocasião do terremoto no Haiti, que diante de uma situação dramática e incerta, em que se luta pela sobrevivência, algumas áreas do cérebro vão sendo desligadas, pra que se possa focar nas necessidades primárias. Não sei se chegaremos a isso, mas percebe que é exatamente o oposto de “se tornar mais sensível e preocupado com o bem comum”? Explico melhor: na hora em que tivermos que disputar um leito ou um respirador com outra pessoa, a última coisa que vamos lembrar vai ser da mensagem de autoajuda lida no face. O vírus não ensina ninguém. Ele nos desnuda, nos revela a carne, a fragilidade, o desespero diante da incapacidade de ação ou controle. E o mais importante: o vírus definitivamente não nos torna iguais.


Tá bonito de ver tanta prática de yoga online, receitas elaboradas, maratonas de séries e tanta proatividade na quarentena. Tá lindo demais ver o pessoal se queixando que tá enclausurado em uma casa enorme, com ar condicionado, banho quente, cama boa e comida na mesa. Celebridades se descobrem capazes de limpar a própria casa, mães aprendem subitamente a conversar com os filhos e até conseguem ficar algumas horas com eles em paz, vejam só. Pais têm passado mais tempo com a família e percebem o quanto não conhecem direito as pessoas com as quais dividem a vida.


Sabe pra quem não tá bonito? Pra todo mundo que mora com toda a família em um espaço pequeno, sem estrutura, sem recurso, sem a higiene necessária e sem a grana contada com que costumava viver. Tá um inferno pra quem não tem privacidade, pra quem não tem conforto ou não consegue sequer suportar as pessoas com quem mora. Pra quem tá sofrendo violência doméstica. Tá difícil pra quem quer se cuidar, mas o parente não colabora. Pra quem já tem doença grave e sabe que se precisar de hospital não vai ser fácil. Pra quem sofre de ansiedade ou qualquer outra doença psíquica. Pra quem depende exclusivamente do SUS, pra quem tá esperando um filho e vai vivenciar seu parto sozinha e atormentada pelo medo em um ambiente já marcado pela dor. Não tá nada lindo pra quem sabe que é o elo mais fraco da corrente, pra quem tomou banho no esgoto e pegou a virose, que brasileiro é ser humano igual aos outros, presidente. Pra quem sabe que tá desprotegido, desgovernado, ameaçado por quem mais deveria defender a gente.


O vírus não ensina nada. Não melhora nada e muito menos vai nos fazer pessoas mais evoluídas depois da sua passagem. Sabe o que pode mudar depois do corona? A nossa capacidade de ver o outro, de sair do nosso casulo confortável e enxergar que nem todo mundo vive na mesma bolha onde é possível passar mais de um mês em casa sem que falte nada. Sabe o que poderia aparecer com a COVID-19? Um pouco mais de empatia, de planejamento político, de consciência de classe. Não adianta fingir que estar à mercê desse grupo de governantes não muda nada ou não foi nossa escolha e responsabilidade. Tudo no mundo tá ligado, meu velho. Tudo tem relação com tudo. Sabe o que seria bem legal nessa quarentena? Ler, mas ler muito. Se instruir, se reinventar, se permitir, se colocar à disposição de quem não tem as mesmas condições de passar por tudo isso. Aí tu vais me dizer que já tem muita gente despertando pra isso e que muita coisa legal tem sido feita no mundo todo. Vais me lembrar de como as comunidades têm se organizado e de como alguns políticos te surpreenderam positivamente. Vais me dizer que tem gente mais aberta, mais corajosa, mais humana. E eu vou te responder: não foi o vírus, foram as pessoas. Foi o amor. O vírus não ensina ninguém.



Juliana Cruz é professora de História, feminista, cervejeira e cassineira apaixonada.

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