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Quinze horas

Quinze horas é tempo demais para uma viagem de volta. Era esse o pensamento de Tereza ao chegar no guichê.


– Poltrona sete, sempre sete, por favor, a menos que esteja ocupada.

Não estava. A atendente da rodoviária sorriu. Passou o bilhete e o troco em moedas pela gaveta sob o vidro que as separava. Tereza sorriu de volta, não muito. Temia soar simplória. Reconhecia o privilégio de estar desse lado do vidro, sobretudo às sete horas da manhã de um domingo, em pleno janeiro em Floripa.


– A praia é dos turistas – disse o caixa do mercado – encontrou tudo o que procurava?

Fez que sim com cabeça. Ele não viu. Ensacava as compras: dois pacotes de torradas, um litro de água dividido em quatro garrafinhas, chiclete de menta, de morango, chocolates e uma maçã. Pensou em dizer “farnel pras quinze horas de estrada”. Perguntaria se ele achava aquilo o suficiente, ririam da palavra farnel, então diria o destino e uma história que justificasse uma viagem tão longa com retorno tão breve.


“As pessoas não querem saber, Tereza, elas não querem”, dizia para si mesma. Depois se lembrava da própria condição, de ser pessoa e querer. Não hoje. Soltou os ombros no alívio de chegar ao assento sete e ver o oito livre. Sentou no canto da janela, acomodou a bagagem ao lado. Duas sacolas de petiscos e uma bolsa de mão. Nada no maleiro. A estadia foi menor que a viagem se somada ida e vinda. Além do mais, não precisou de roupas para o que veio fazer.


Estranhou o frio dentro do ônibus em contraste ao calor do lado de fora. Queria ter na bolsa um casaco, uma manta, qualquer coisa com que cobrir parte do corpo. Quinze horas sentindo frio não estava nos planos. Pôs a bolsa sobre as pernas. Pegou um bloco de notas e uma caneta. Escreveu “o frio que faz aqui é tua ausência a me perseguir”. Depois riscou ‘tua ausência’. Releu. Fez um xis sobre a coisa toda. Contava sílabas métricas quando o motorista apareceu, falou o de praxe – nome, cinto de segurança, boa viagem. O ônibus partiu. Esperou o encaixe em linha reta. Ficava enjoada nas curvas. Voltou ao bloco:


“Faz frio

no teu lugar

vazio”


Escreveu no canto esquerdo “partida” e datou. Queria ser boa em haicais. E em despedidas. Melhor cozinheira, nadadora, melhor cantora, desenhista. Queria ser bailarina clássica, aeromoça. E não estaria presa num ônibus por quinze horas pensando no que fez e deixou de fazer nas últimas vinte e quatro, na voz dela, no gosto dela, no cheiro dela, na certeza daquelas mãos, mais a manta, o casaco e o arrependimento que não tinha.


Fechou os olhos por um minuto. Desejou um sonho bom. Um pesadelo. Uma bobagem capaz de desviar seus pensamentos. Pensou no custo dessa viagem a ser pago em parcelas durante os próximos meses, quem dera não mais que as três do cartão. Pensou na ida. O arrepio, a vertigem. A alegria insana que tentava esconder com os óculos escuros. A mala de mão pesando uma tonelada. O peito acelerado provando o ir uma necessidade básica.


Suspirou, retrocedeu ao embarque. O rosto do marido, a boca se fechando no silêncio, os olhos tristes, a mão de abanar guardada no bolso. Ele parado, ele limpando os olhos. Ele cada vez menor à medida que o ônibus se afasta.


Veio uma vontade súbita de abrir a janela, quebrar a trava de segurança, jogar metade do corpo para fora. Ter a cara envolvida pelos cabelos de modo a não ver um caminhão. Virar pedaços tingindo de vermelho escuro a estrada.


Cravou os dedos nos braços da poltrona. Os pés pesando no assoalho. Um piscar forçado pelo trepidar das rodas descendo uma ponte. Tensionou o pescoço. Começou a hiperventilar. A velha sensação de quem quer fugir, mas pra onde? Inspirou, contou seis segundos. A barriga inflada feito um cadáver retirado do rio. Expirou devagar. Reassumiu o controle do próprio corpo. Mirou as árvores móveis na paisagem. A vida passando a cem quilômetros por hora.


Sentia toda viagem como a última. Voltar para casa, um andar para trás. A sensação de ser uma estranha nas próprias roupas. Olhar para os objetos buscando o que mudou. Cuidar das flores mortas, limpar um a um os quadros, os livros, as miniaturas. Esvaziar as prateleiras, passar o dedo na madeira sem deixar rastro no pó. Rearranjar os móveis. E sentar de frente para a janela. Ela e um cigarro, ela e um livro, ela um pensamento interrompido pela chave a girar na porta.


Puxou o bloco de notas. Queria deixar um recado pra sua eu de amanhã. A caneta falhou. Forçou o risco duas, três vezes, na quarta, conseguiu. Virou a página. Encarou a folha em branco. Uma criança riu de algum lugar no fundo do ônibus. O velho da frente deitou o banco ao máximo. Tinha sobre si um cobertor xadrez. Dormiu e, em minutos, roncava. Tereza pôs a bagagem no chão e esticou as pernas sobre o assento oito.


Desenhou uma gota de chuva, depois outra e outra, várias delas. Desenhou uma poça demarcando o chão. No alto, uma nuvem que bem poderia ser a poça refletida no céu. Fez um raio ligando as duas. Fez um guarda-chuva aberto, caído no canto da página, o gancho virado para cima, a concavidade cheia d’água e um peixe pulando dela. Avaliou o resultado. Deu ao peixe olhos mortos. Guardou a caneta e o bloco sem pensar no que queria ter dito antes.


Sobre Ju Blasina Nascida em Porto Alegre, crescida em Rio Grande, Ju Blasina é poeta e feminista. Cursou biologia e letras pela FURG. Publica em e-zines e jornais de sua região desde 2009. Lançou dois e-books independentes (2010 e 2014) e seu primeiro livro, 8 horas por dia, pela Concha editora em 2017.

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