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Sobre abandonar-se

Hay tantas cosas que tendrás que descubrir. Las cosas invisibles, las difíciles, la brecha que te espera entre el deseo y el mundo: apretarás los dientes, resistirás, nunca pedirás nada. No, no se vive para ganarle a nadie. Se vive para darse.

Eduardo Galeano

Faz algum tempo que o verbo “abandonar” e suas derivações tem me habitado. É curioso, inclusive, que eu fale desse verbo a partir da ideia da habitação, já que, enquanto adjetivo, “abandonado/a” costuma ser qualificação associada à imagem da casa, no meu caso em particular da casa de algum vizinho que morreu ou que partiu – e morrer não é partir, também? – para algum outro lugar e deixou na minha memória de infância um espaço vazio, mas ao mesmo tempo repleto de possibilidades de ficção para a minha imaginação e a dos meus primos e a dos meus vizinhos que aí encontravam não só histórias, mas também espaços escuros onde se esconder durante a brincadeira.


Socialmente, abandonar deriva adjetivo feminino. Pouco se pensa sobre o homem abandonado, inclusive porque, acredito, poucos são os casos em que isso acontece e infelizmente ninguém mais se choca com a ideia de uma mulher abandonada porque isso parece cotidiano demais para se fazer caso a respeito. No tempo de minha avó, uma mulher abandonada se sentia humilhada e envergonhada e culpada em virtude de uma atitude canalha de um outro sujeito mais canalha ainda. Mas a sociedade patriarcal não culpabiliza o sujeito sem caráter, se ele tiver no meio das pernas um genital proeminente e dele fizer uso de acordo com o manual do bom macho. Aqui se castram cotidianamente as mulheres, e a sociedade as abandona todos os dias na fila da padaria, no mercado de trabalho, nos espaços públicos, nos estabelecimentos que disponibilizam fraldário sempre no banheiro feminino e nos espantos que nos são acionados toda vez que algum homem cumpre com sua função como se estivesse fazendo algo sobrehumano e então todos começamos a cultuar rodrigos Hilbert como se eles fossem exemplares preciosos de uma espécie.


Mas, embora eu me indigne e fique soltando fogo pelas ventas com tudo isso, é preciso admitir que, na pele de homem branco duplamente privilegiado que sou, essas questões me tocam muito superficialmente porque não sei o que é estar na pele de uma mulher. Abandonada, nesse sentido, não é um adjetivo que me compita socialmente, e é provável que muitas vezes, na verdade, eu ainda contribua para a manutenção de alguns abandonos sociais. Mas essa ideia do abandono me habita, eu dizia há pouco, há algum tempo.


Eu dizia, também há pouco, que a ideia de abandono remete muito frequentemente à ideia de casa, e no meu caso em particular a uma casa da infância, habitada de memórias vividas ou contadas para povoarem as nossas imaginações infantis. Psicanaliticamente, a casa costuma também estar associada a nós mesmos – minha psicóloga sempre diz que a forma como sonhamos a casa está relacionada a como nos estamos concebendo; acredito lembrar que Bachelard tenha dito algo também nesse sentido em A poética do espaço. Não temos medo, nós também, de sermos casa abandonada? Que atire a primeira pedra a criança que não temeu o abandono dos pais.


A imagem da criança abandonada, aliás, é uma imagem que não só me toca profundamente como se reflete de alguma forma nos meus intentos ficcionais. Quando participei da construção coletiva do romance Condomínio Saint-Hilaire, junto ao Invitro, em Rio Grande, construí um encontro da minha personagem com a criança que ela foi um dia, uma criança que nada dizia, mas que chorava com ela no elevador, se não me engano. O elevador, cujo nome nos remete a uma movimentação para cima, me parecia um excelente espaço para que a criança chorasse e encarasse nos olhos aquele que era ela depois de crescida, o que representaria no campo do simbólico a decadência da ideia de ascensão relacionada à noção de maturidade advinda da chegada à vida adulta. A ideia de abandono me habita há mais tempo do que eu imaginava quando iniciei este texto, suponho.


Pergunto-me, então, quando efetivamente começamos a nos sentir abandonados e o quanto nosso percurso de vida vai contribuindo para que colecionemos sensações de abandono: do beijo que esperamos e não recebemos; do abraço que não veio; da conversa que não teve contexto para ser iniciada, mas que estava muito bem antevista na nossa mente quando saímos de casa. Recordo que, em tempos de escola, as funcionárias do Bibiano costumavam me chamar de o “Esqueceram de mim”, referência ao clássico filme em que estrela o ainda criança Macaulay Culkin em virtude de o meu pai sempre ir me buscar muito tarde na escola por estar trabalhando e eu, que era aluno do turno da manhã, algumas vezes chegar a recepcionar os vespertinos estudantes do colégio. E penso que é talvez de pequenos abandonos como esse, ainda que necessários, que nós vamos nos constituindo e criando carapaças sociais que nos permitam enfrentar e antever as possibilidades diárias de novos abandonos.

Vivendo em uma sociedade por demais individualista – e os tempos têm sido cada vez mais sombrios, sobretudo neste país –, blindamos os carros, cercamos as casas, gradeamos as janelas e vamos nos revestindo de máscaras e mais máscaras que de tão inúmeras e tão densas se apegam a nossas caras de forma a não mais sabermos o que éramos antes do caos. Não somos nem nos sabemos. E em alguma medida nos abandonamos. E, por ironia da palavra, parece-me que só escaparemos a essa sensação de abandono quando efetivamente nos abandonarmos. Abandonarmo-nos, valorizando a pronominalidade do verbo. Porque abandonar-se implica, em certo sentido, esquecer-se de si, mas também significa esquecermo-nos das amarras que a sociedade nos impõe todos os dias e em todos os espaços e entregarmo-nos desarmados ao porvir. Sem prever as catástrofes, sem antecipar as possibilidades nem calcular as reações. Entregarmo-nos, portanto, despidos do peso que carregamos cotidianamente, se isso for possível.

Toda utopia carrega com ela um germe de concretude. Eu espero que aqui nós possamos nos abandonar, nesse sentido que carrega com ele certo caráter volitivo, a um espaço em que o medo não nos impeça. Longe de nos martirizarmos com os abandonos sofridos, que nos entreguemos ao ato revolucionário de nos abandonarmos. Dá-me a tua mão, leitor(a), para essa deriva.


Giliard Barbosa é um tanto de caos que, ao nascer, recebeu da mãe o nome de um cantor, com um L a menos, pra não complicar. Ordenado pela palavra, o rapaz encontrou na poesia uma forma de cantar a ausência. Professor do Instituto Federal, Giliard tem mestrado em História da Literatura (FURG) e está em vias de concluir seu doutorado (UFRGS). Interessa-se pela palavra poética, e seu foco de pesquisa tem sido a escrita de mulheres e(m) trânsitos.

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