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Some days

Choveu mais cedo e desviar das poças é tarefa impossível. Devidamente trajada de galochas e guarda-chuvas comprado no camelô, arrisco a caminhada até a casa de cultura.


Desviar das pessoas é ainda mais impossível, todos querem vender ou comprar algo, seja cabelo, ouro, chip de celular ou caixinhas de som, meias coloridas, moletons pirata- como as camisetas de time tão em voga nos altos escalões - enfim, o centro hoje é o retrato do desespero da cidade, do estado, do país, a anti-estética da balbúrdia, com suas muitas lojas fechadas, as lojas abertas horríveis, araras nas calçadas e estampas de oncinha (que eu amo), sua moda fast-food que não resiste à primeira lavada, restaurantes oferecendo ilhas de almôndegas, não consigo pensar em nada menos apetitoso do que bolotas de carne flutuando em molho vermelho, as farmácias em profusão, pílulas azuis e anticoncepcionais com desconto, a estátua humana e os outros que se esbarram, bolhas de sabão. Logo em seguida tem a praça onde um velho dança de bengala e chapéu enquanto mais adiante um homem toca um violino triste. O som melancólico abafa o ruído do caos e as folhas das árvores formam um tapete escorregadio e amarelo no chão molhado, os velhos jacarandás que não veem a hora de chegar a feira do livro. Ou a primavera, o que vier primeiro. Paro um pouco para ouvir a música, do meu lado uma banca vende camisetas que me dizem que estou exausta porém plena, me lembram de lutar, pedem para não largar a mão de ninguém, brincam de deusmelivre mas quem me dera, falam de fé, de esperança, a cara bonita das marielles, das fridas, não é não, o colorido dos unicórnios que são reais só para quem acredita.


A fila da casquinha de sorvete está grande, duas meninas de mãos dadas esperam, uma delas veste também uma camiseta azul com moral, mas em inglês, e está escrito some days are cool and somedays are amazing, e eu penso onde, onde estão esses dias que além de legais ainda podem ser incríveis? Com certeza não andam por essa terra onde alguns dias são ruins e outros são quase sempre piores. Talvez dias bons assim sejam como os unicórnios e as fadas, e só sejam reais para quem acredita, quem sabe eu compro uma fé por trinta reais, ando bem precisada de acreditamentos. De qualquer jeito, um punho fechado é infinitamente melhor do que aquele dedo em riste, brincar de mímica, para mim, é fazer orelha de burro. Prefiro brincar com as palavras.


Chego na casa do poeta, subo até o café do terraço para olhar a vista. A imensidão cinza me abraça enquanto as nuvens se confundem com o rio. Hoje não há horizonte possível no encontro das águas com o céu. Não, hoje o sol não vai se pôr no cartão postal da velha cidade. Mas amanhã, quem sabe? Peço uma taça de vinho e espero.


O amanhã ou a primavera, o que vier primeiro.


Trabalho como médica, me traduzo como escritora. Saí de um lugar para onde não pretendo voltar. Agora sigo os desvios, marcando com pétalas e palavras meus descaminhos. O amor errado mais certo do mundo (Concha Editora, 2017) é meu livro de estreia.

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