
Eu tenho trinta-e-cinco anos. Precisei escrever pra poder visualizar o tamanho dessa idade. Um spoiler aos mais jovens: não, a gente não tem noção exata do passar dos anos e, por isso, acontece de não se sentir com a idade que tem. Quando eu era pequena ter trintaecinco era ser praticamente uma senhora. E, de fato, me chamam assim em alguns lugares há alguns anos, o que ainda me assusta um tanto. Hey, senhora é a tua mãe! Senhora tá nos inferno. Senhora é aquela tia ali, ó. Eu não. Senhora tem filho, tem família, usa cor sóbria.
Tô dizendo tudo isso pra tocar em um ponto crucial na vida de qualquer pessoa. O fato é que chega uma hora em que a gente precisa assumir o controle da própria existência. Pra alguns isso se dá bem antes dos trinta. Pra outros, jamais acontece. Comigo tem sido nos últimos anos e pode ser que contigo também. Vejo muita gente da minha idade frustrada com o corpo, com o emprego, com os pais, com a vida afetiva, com o lugar onde mora, consigo mesma. Da minha parte não é diferente; passei um bom tempo tentando ser a versão mais light de mim. Porque eu achava que assim agradaria a um maior número de pessoas. Mas não. Quanto mais eu tentava me encaixar, mais eu me sentia fora da curva.

Daí que de uns tempos pra cá eu decidi que já tinha passado da hora de parar de flertar com as mulheres que admiro e me tornar uma delas. E isso passa pela forma como me visto, me alimento, me comporto, me posiciono em uma discussão ou separo o meu lixo. Passa pelas minhas limitações e pelas coisas que decidi me permitir. No meu caso específico, resolvi assumir uns amores rebeldes que sempre alimentei nos bastidores: tatuei o braço, depois de sonhar com isso por anos e temer a reação dos mais próximos; declarei meu amor à mitologia africana e outros cultos; decidi parar de comer carne e derivados de animais (isso tá em fase de testes, mas tá indo muito bem); resolvi me posicionar politicamente em toda e qualquer oportunidade, ainda que isso me custe amores e me cause fortes dores físicas e mentais; optei por não rivalizar com outras mulheres e adotar uma postura feminista sem reservas. E tantas outras coisas que não cabem no espaço desse texto. Ao final, entendi que o amor é artigo de luxo e que não pode ser comprado através de corruptelas de quem somos. Quem me ama vai ter que me amar como eu sou. E eu sou essa mulher desdobrável**, tipo a Adélia Prado.
Eu sei que dói um bocado. E sei que é mais fácil a gente seguir o fluxo, cantar o que todo mundo canta, comer o que todo mundo come e usar aquela roupa bacaninha da grande loja que se utiliza de mão de obra escrava. Também sei que é mais confortável não discutir temas polêmicos ou não se desafiar. Que o mundo tá osso e que ser afrontosa custa muito caro. Cada vez mais.

Mas, estranhamente, quanto mais eu tomo conta de mim, quanto mais exploro meus recantos, minhas curvas, meus becos sem saída, quanto mais eu escavo meus tesouros submersos nesse mar de carne e culpa, mais eu sinto prazer em ser quem eu sou. Mais me reconheço minha. Mais me sinto forte e capaz de criar e de colaborar com o mundo onde me coube viver. E, se é assim, mais admiro o pratear dos cabelos, mais acho interessante o sorriso com o pé-de-galinha franzido, mais aceito que o tempo passou e que eu aproveitei. Não é que o Nietzsche tava certo o tempo todo?
Deseja mais alguma coisa, senhora? “Ganhar o mundo”, eu responderia. Mas digo que por hoje era isso. Pode embalar pra presente.
* Em Ecce Homo (1908), Nietzsche cita a máxima do poeta Píndaro para empreender uma reflexão profunda a respeito da própria identidade.
**Extraído do poema “Com licença poética”, de Adélia Prado.

Juliana Cruz é professora de História, feminista, cervejeira e cassineira apaixonada.
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