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Vale a pena conhecer: A estranha ordem das coisas, de António Damásio

António Damásio, neurocientista português e professor da Universidade do Sul da Califórnia (USC - University of Southern California), em A estranha ordem das coisas, investiga o papel fundamental dos sentimentos como os grandes propulsores da nossa inteligência.


Na contramão do senso comum que detona os sentimentos em detrimento do pensamento dito racional, compreendido como faculdade humana suprema acima de tudo e de todos, Damásio deseja encontrar o ponto exato (ou o mais próximo possível) em que o sentimento aflorou em nossos corpos e fez com que a humanidade seguisse caminhos tão incríveis – para o bem e para o mal.


Na concepção do neurocientista, os sentimentos são os grandes motivadores da produção cultural humana. A inteligência não seria “ativada” se não fôssemos afetados de alguma forma, ou seja, se simplesmente não sentíssemos. Damásio utiliza o exemplo da medicina como uma das manifestações culturais movidas pelos sentimentos: a relação entre o sofrimento do paciente e a empatia do médico, o qual, movido por essa vontade de aplacar a dor do outro, sai em busca de soluções para as doenças.


Assim, para Damásio: “Linguagem, sociabilidade, conhecimento e razão são os inventores e executores desses processos complexos. Mas são sentimentos que os motivam e que permanecem para aferir os resultados” (DAMÁSIO, 2018, p. 13).


É estranho que os sentimentos tenham sido desprezados durante tanto tempo, uma vez que a sociedade sempre foi inventiva, cruel, unida, detestável, racional e irracional – todas essas reações exigem emoções. Atualmente, a sociedade é alavancada por dois afetos: o ódio e o medo e, como temos visto, isso serviu a muita gente. Mas vamos seguir...


Embora o livro de Damásio tenha sido publicado em 2018, desconfio que muitas pessoas já sabiam da ligação entre sentimento, inteligência e ação. O que é a nossa configuração social senão uma construção real e virtual de reação “sentimental” aos fatos? Refiro-me, claro, às redes sociais em um primeiro momento e as emoções despertadas que atuam no nível real. Antes, era possível “curtir”. Hoje, você “curte”, “ama”, “haha”, “fica triste” em uma postagem. Ainda, além dessa reação a alguma notícia, foto ou vídeo, você pode escrever coisas a respeito do que vê e daí saem as mais diversas expressões. Dependendo da sua rede de amigos e conhecidos, o ódio pode ser a mais comum.


Sentimentos cultivados/motivados pelas redes sociais às vezes soam como algo desprovido de racionalidade e, Damásio nos mostra, não é. Através dos sentimentos, podemos calcular os movimentos seguintes em nossa caminhada enquanto espécie. Nossas reações irão delinear os caminhos para o futuro.

Assim, creio que os controladores do mundo, os donos dos algoritmos, captaram muito bem o valor dos sentimentos e, tendo isso em mente, conseguem nos direcionar ainda mais para o destino pretendido. É bem conspiratório, eu sei. Mas, por exemplo, o Noah Yuval Harari, em 21 lições para o século 21, já chama a atenção para esse fato: o de que não estamos nos dando conta do controle da nossa vida virtual pelas grandes corporações e isso está diretamente conectado à nossa vida real.


Outra coisa linda e impressionante no exemplar de Damásio é a perfeição do funcionamento do nosso corpo. Por meio de cooperação, as células do nosso organismo comunicam-se rapidamente com o cérebro, criando uma verdadeira sinfonia: cada partícula é uma nota que deve sempre soar bem, caso contrário, é emitido um alerta: o corpo está em perigo. Nesse sentido, o autor pontua nesse livro (como já houvera pontuado em outros, ver: O livro da consciência) a indissiociabilidade entre corpo e mente. Parece meio óbvio, mas a tendência é haver um culto ao cérebro em detrimento de um corpo que apenas o obedeceria.


Por que as sociedades, então, não se comportam como um grande corpo, cada indivíduo servindo como célula disposta a salvar esse corpo de maneira cooperativa? Porque somos humanos, porque dentro do indivíduo reside uma subjetividade, porque dentro dessa subjetividade contém uma rede complexa de sentimentos, vontades, reações. Fôssemos iguais às nossas células apenas em tamanho maior, talvez conseguíssemos desenvolver um senso de unidade e comunidade. É claro que isso se aplica a sociedades humanas. Abelhas e insetos são ótimos exemplos de seres sociáveis e, ao mesmo tempo, organizados. Para esse assunto, ver: A conquista social da terra, de Edward O. Wilson.


O assunto de A estranha ordem das coisas não cabe em uma resenha, mas fica a recomendação. Ele possui um panorama que transita na história da evolução dos organismos na terra, pois o neurocientista descobre em bactérias e insetos comportamentos atuando “como se fossem” sentimentos, essa é a “estranha ordem das coisas”. O livro apresenta detalhes do funcionamento de nosso cérebro, emoções e seus desdobramentos na cultura. Pode parecer pouco interessante ou “técnico demais”, mas não é. Damásio tem uma capacidade enorme em tornar a neurociência um assunto ao alcance de todos.


Gostaria de encerrar esse texto com uma citação de António Damásio que ilustra esse momento tão crítico para nós, bem como o estilo de escrita do autor, como falei, bastante acessível.


As sociedades humanas são previsivelmente fragmentadas segundo uma variedade de medidas como taxa de alfabetização, nível educacional, comportamento cívico, aspirações espirituais, liberdade de expressão, acesso à justiça, posição econômica, saúde e segurança ambiental. Dadas as circunstâncias, é ainda mais difícil incentivar o público a promover e defender uma plataforma comum de valores, direitos e obrigações negociáveis pelos seus cidadãos. [...] Por outro lado, o público geralmente não dispõe de tempo nem de método para converter quantidades colossais de informação em conclusões sensatas e aplicáveis na prática. Ademais, as companhias que administram a distribuição e agregação das informações prestam uma assistência dúbia ao público: o fluxo de informações é dirigido por algoritmos da companhia, e esta distorce a apresentação dos dados para que atendam a uma variedade de interesses financeiros, políticos, sociais, sem falar nos gostoso dos usuários, de modo que eles possam continuar dentro de seu próprio silo de opiniões (DAMÁSIO, 2018, p. 245, grifo meu).

Por hoje é isso aí, espero que tenham gostado dessa dica. Busquem o conhecimento! Fui!


Suellen Rubira é doutora em Letras – História da Literatura pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Ama livros e música e fotos de animaizinhos fofos.

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