Ele segura três pedaços de papelão mal colados. É segunda-feira, estamos parados em uma sinaleira na noite fria do inverno que finalmente deu as caras. Em cada um dos cartazes improvisados, uma frase desalinhada em letras azuis. No primeiro está escrito "nada é por acaso". No segundo, "você é especial". O último diz: "por favor me ajude, tenho fome.".
O sinal abre antes que eu possa ajudar o dono do cartaz, um homem magro e maltrapilho que certamente tem fome, que com certeza tem sede, tem frio, talvez tenha algum vício e inegavelmente tem alguma criatividade. Um mendigo motivacional.
Acho graça e comento com o motorista do aplicativo, que resmunga um "era só o que faltava", enquanto desata a contar histórias - indignas - de outros semáforos e outros homens, mulheres, crianças, se tem coisa que não falta nessa cidade é semáforo e pedinte, não necessariamente na mesma proporção.
Eu não quero que o homem fale mais nada, porque ele já usou a palavra-chave do sonho americano da meritocracia, aquele que nos diz que é só ter vontade, blá, blá e eu tenho preguiça de explicar sobre lugar de largada e todo o resto.
São esses tempos de azul ou rosa, oito ou oitenta, polaridades extremas e conceitos absolutos, opiniões fortes e quase sempre excludentes. Ando cansada dos discursos, das teorias, dos dedos apontados, das soluções milagrosas. Cansada da tua e também da minha suposta - entre aspas - "superioridade moral".
Se ele não acredita na fome e na dor do homem de barbas brancas, o profeta de beira de calçada, que silencie e me deixe em paz para acreditar. Deixa que eu seja boba, que ainda veja certa poesia nas mal traçadas linhas de papelão. Porque me faz bem ter esse olhar andarilho, vagando nas esquinas dos imprevistos, catando restos de cor.
Gosto de guardar meu juízo na caixa de possibilidades, ainda que seja só por algumas horas do dia - é preciso. E basta um instante para sacudir as certezas e botar as dúvidas a trabalhar.
Não custa nada (tentar) pensar "e se fosse comigo?" De verdade. Sem filtros, sem julgamento. Sem imaginar que não poderia ser comigo porque nossa, nunca, estou acima de qualquer suspeita ou desvio.
Sim, poderia. Ser comigo, contigo, que na dança das cadeiras tudo se move o tempo todo e muda de lugar, e fazer tudo certo é garantia de quase nada. Afinal, certo é só um conceito.
Não sou eu hoje, não sou eu ontem, o amanhã quem saberá quem sou?
Se nada é por acaso e tudo está escrito em algum lugar, ainda que nas letras tortas, talvez exista também um alguém que me ache especial, mas tão especial (e nunca melhor) quanto o mendigo que segura o cartaz e tem frio e fome, e que pede minha ajuda no sinal vermelho.
Talvez a sorte não exista e tenha alguém no comando dessa bagaça, que saiba melhor. Talvez não. Talvez seja só o grande azar dele.
Na outra noite o homem não estava mais lá, para eu perguntar. Nem para receber o casaco velho da minha caridade hipócrita. E é só isso que eu sei, cada dia menos.
Sobre Daniela Altmayer
Trabalho como médica, me traduzo como escritora. Saí de um lugar para onde não pretendo voltar. Agora sigo os desvios, marcando com pétalas e palavras meus descaminhos. O amor errado mais certo do mundo (Concha Editora, 2017) é meu livro de estreia.
Dani , muito difícil !!
Hipocritamente , carrego trocados no bolso para os moradores da rua do meu bairro.