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Volta ao mar

Para brindar a primeira publicação do ano, excepcionalmente publicarei aqui um conto que escrevi para a Concha Editora. Divirtam-se e feliz 2019.


Volta ao mar


O som do tambor ressoava e os orixás que já tinham chegado dançavam na volta do barquinho de madeira com a Iemanjá dentro. A beira da praia estava apinhada e a noite não mostrava uma estrela sequer. Fogueiras espalhadas pela areia iluminavam os rituais. O som se misturava com outros sons de outros tambores de outras terreiras e tudo aquilo se transformava numa mistura sonora de matriz africana medonha na cabeça de Rodrigo.


O tamboreiro puxava a reza e os outros respondiam. Quem não incorporava um santinho ficava na volta. Saias e batas coloridas pareciam levantar vôo com o vento que persistia em deixar o ambiente mais frio. Rodrigo olhava para a Iemanjá e pedia proteção, mas não para ele: e sim para Martine e para o Felício. Ele sabia dos dois, sabia o que estava acontecendo, mas ele foi ridicularizado, foi desacreditado – o chamaram de louco, de doido, estava vendo coisas onde não havia nada. Proteção a eles, porque a vontade era de ali mesmo dar na cara dos dois. Veja como eles sorriem, veja como eles trocam olhares, veja como eles não se importam com nada, são dois egocêntricos da pior espécie. Sem consideração pelo passado, sem consideração pelo sentimento que ainda havia em seu coração.


E eu ainda fui à sua festa de aniversário, seu merda! E eu ainda abri meu coração pra vocês!


“Rodrigo, seja forte e não faça nada. Seja forte!”


- Por favor, mãe das águas, proteja-os de mim, pois não sei o que posso fazer daqui a pouco, mas não será bom. Nem pra eles, nem pra mim.


Mas Rodrigo não se importava com ele, a vida é dolorida mesmo (vitimismo?). Chegou o momento de pegar o barquinho e ir, embalando para frente e para trás, até o mar e soltá-lo com a santinha dentro. Que a deusa vá e nos ilumine direto do mar com a sua luz e com a sua sabedoria. Felício ficou do outro lado. Dois irmãos-de-santo ficaram na frente.


Embalando e embalando e chegando até o mar.


Martine se aproximou e ficou ao lado de seu amigo. Amigo? Felício não era mais amigo dele. A amizade é estabelecida pela confiança e pelo amor – não havia mais confiança, não havia mais convivência, não havia mais ligação. Não havia mais o que ver. Com a mão esquerda, Rodrigo segurava a ponta da ripa de madeira que sustentava o barco na parte de trás, a mão direita estava fechada. Assim que soltassem o barquinho, ele ia socar Felício até desmaiar. Azar a gritaria, azar as futuras relações quebradas das pessoas que gostam do novo casal de amantes. Se alguém perguntar o porquê, ele vai responder sem cerimônias.


“Segura a onda, Nego Rodrigo, tu é mais forte que tudo isso. Toma tento, negão!”


Embalando e embalando e chegando até o mar.


Enquanto Rodrigo segurava o choro, a noite foi clareando com os raios e o vento se transformou em uma ventania. As fogueiras dançavam ao ritmo da natureza. O coração acelerava e Rodrigo deixou escapar da mão a ponta da ripa. Surpreso, ele encarou a bonequinha que representava Iemanjá e ela pareceu se virar para trás. Ele olhou ao seu redor e ninguém percebeu o movimento. As águas marinas estavam mais fortes e golpeavam as pernas de quem estava ali. Os sons dos tambores ficaram mais altos e mais difíceis de notar o ritmo: uma avalanche de sons que fazia sentido somente com a correria das pessoas que queriam fugir da tempestade.


Embalando e embalando e chegaram até o mar.


As ondas batiam quase ao peito. Rodrigo ficou para trás. Soltaram o barquinho e a correria, a mistura de sons, e os raios tornaram-se mais intensos. Martine percebeu que Rodrigo estava sozinho e foi até ele.


- Está tudo bem contigo?


E tu ainda me dizia que queria ficar sozinha, que era o melhor para ti, o que tu fizeste? Por que não disse que eu era o problema? Eu estava me medicando, eu estava me tratando, eu não via mais aquelas coisas da minha cabeça. Eu estou agora na realidade!


“Seja forte, Rodrigo, seja um rei perto deles!”


Rodrigo ergueu o punho direito e, no instante em que começou a chorar, a chuva anunciada caiu com a mesma violência que a dor e o rancor perfuravam o espírito dele.


- Diguinho, o que houve?


“Tu és melhor que tudo isso! Seja grande, seja forte, meu nego!”


Rodrigo deu as costas a Martine, saiu da água e se misturou aos sons, aos raios, às gotas da tempestade e junto à deusa, seu espírito foi para o fundo do mar, viver na escuridão da vida.


Meu corpo é da terra.


Minh’alma é sua, Omio odô!


Cristiano Vaniel é professor de Literatura, escritor, vive em Twin Peaks, fuma Red Apple e é embalado por synthwave.

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