A umidade típica que penetra os ossos já tinha aparecido pra nós no Cassino em uma terça feira de abril. O calor não gosta daqui. A gente vive nove meses de frio pra enfim ver nascer o verão, que não dura mais que dois míseros meses e inclui chuvas torrenciais e um vento peculiar e constante que caracteriza a estética do lugar. Esse ano parece que o horário de verão também foi cancelado pelo governo. Ironia ou não, a hora que encompridava os dias foi instituída por Vargas em 1931. Getúlio era gaúcho e sabia muito bem o que era ver a noite gelada tomar conta de tudo às dezessete e trinta. O papo de economizar energia era uma desculpa dele pra gente curtir mais o verão, só pode.
O fato é que pedalávamos pelas ruas vazias e congelantes, loucos pra chegar em casa e aquecer o corpo com um chá ou um vinho. Na encruzilhada que dá acesso à nossa rua, um molho de chaves prateava o chão. No chaveiro (provavelmente um souvenir de uma viagem ao Rio) tava escrito que gentileza gerava gentileza. A gente parou. Pegou as chaves e começou a pensar em como fazer pra que voltassem às mãos do dono. Será que a pessoa refaria o caminho percorrido? Não seria melhor anunciar nas redes sociais? Encontramos um galho que parecia bom; enterramos até ficar bem firme e penduramos nele as chaves do lar de alguém. Uma família? Um casal apaixonado? Estaria alguém do lado de fora naquele frio? Penduramos as chaves no galho e reproduzimos na areia a frase do chaveiro.
Voltamos pra casa. Naquele dia tinha chegado um livro que eu tava ansiosa pra ler. Era “Um guia Pussy Riot para o ativismo”, de Nadya Tolokonnikova, em que a fundadora do coletivo artístico e banda punk Pussy Riot oferece uma espécie de manual de resistência em tempos sombrios. Ela entende bem do assunto. Foi presa em 2012 com suas companheiras, por cantar uma música anti-Putin; permaneceu encarcerada por quase dois, em um campo de trabalho forçado. Esse período, apesar do sofrimento intenso, foi de extrema importância pra moldar o ativismo de Nadya, que nos presenteia com um relato poderoso, com o qual a gente se identifica na hora, por motivos óbvios. Segundo ela,
Um dos maiores desafios que enfrentamos ao resistir aos abusos de poder é ter que buscar constantemente mais inspiração e motivação. Você toma porrada e não só aguenta o tranco, mas busca dentro de si coragem e energia para tirar onda e ainda dar risada. O segredo é a perseverança. Se os abusos de poder insistem em acontecer, devemos insistir em identificá-los e construir futuros alternativos.
Buscar inspiração, encontrar dentro da gente uma força rebeldemente alegre, que nos leve de volta à ação, seja ela qual for. Dar risada, apesar de tudo. Apesar de você amanhã há de ser outro dia. Ela também diz que a gente tá vivendo um momento histórico de total apatia por parte das pessoas. E que isso acontece porque a cada manhã somos bombardeados por um pesadelo pior que o do dia anterior. Daí as pessoas acabam parando de agir, seja por medo, seja por banalizar a violência pra conseguir levar a vida. Só que a apatia é a coisa mais perigosa do mundo, porque ela nos faz acreditar que é impossível mudar e nos torna espectadores da própria desgraça. Os conselhos de Nadya são muito bem-vindos, sobretudo quando nosso país vive sob a égide do ódio e da ignorância. Seja pirata. Faça você mesmo. Recupere a alegria. Faça o governo cagar nas calças. Seja um delinquente artístico. Identifique os abusos de poder. Não desista fácil, resista, organize-se. Escape da prisão. Crie alternativas. Sejamos pessoas.
Ela reforça a necessidade de voltarmos a criar, ter imaginação política. E agir, ao invés de apenas reagir. Tudo isso com uma ingenuidade e doçura surpreendentes. Mesmo tendo sofrido abusos de natureza diversa, vindos de todos os lados, ela escolheu manter a crença no poder do amor e na sabedoria típica das crianças: “Escolhi ser o Idiota, o personagem de Dostoiévski que prometeu a si mesmo que, não importa o que acontecesse, ele continuaria a ser aberto, simpático e gentil com as pessoas ao redor”. Apostar nesse combo de amor, gentileza, curiosidade e disposição pra criar e transformar é a chave pra resistir à desumanização. Nadya acredita que, ao rebatermos ódio com ódio, nos tornamos presas fáceis aos nossos oponentes, justamente porque eles já conhecem esse modo de estar no mundo.
Falando em chave, no dia seguinte encontramos o mesmo galho. Nele tinha um bilhete, escrito em um pedaço de esparadrapo: “Muito agradecido, obrigado. José M.”. A gente não sabe quem ele é, onde ele mora e como foi que perdeu o chaveiro. Não sabemos se foi mesmo ao Rio, se é feliz ou em quem votou pra presidente. O que a gente sabe é que vale a pena fazer coisas boas. Que talvez não dê pra mudar o mundo, o governo, ou mesmo parar todas as coisas horríveis que têm acontecido com a gente, mas que dá pra fazer melhor o dia de alguém. O que a gente sabe é que fazer qualquer coisa sempre vai ser melhor que não fazer nada. E que gentileza gera gentileza.
Juliana Cruz é professora de História, feminista, cervejeira e cassineira apaixonada.
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