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A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa*

Atualizado: 26 de fev. de 2019


O Quintana tem um poema célebre sobre a passagem do tempo. Vale a pena ler...


A verdade é que não sei bem como começar esse texto, que já nasce atrasado e quase fora de prazo. É assim mesmo: tudo na vida gira em torno do tempo ou da falta dele. Daí que esse ano tomei uma decisão importante e arriscada. Eu, sendo professora da rede básica, aceitei reduzir minha carga horária na escola (o que vai diminuir ainda mais o meu salário) pra ter mais tempo pra mim e mais qualidade de vida, morando e trabalhando no Cassino. Quase me sinto culpada por isso. Quem ela pensa que é pra trabalhar 30h por semana? Pensa que é dona do próprio tempo, da própria vida? Ela mora sozinha, deveria aproveitar pra garantir o futuro, fazer um pé de meia. Quantos professores trabalham 60h e essa criatura aceitando viver com tão pouco. Quase posso ouvir o que pensam as pessoas quando lhes digo que sim, vou trabalhar “apenas” em duas manhãs e quatro tardes nesse ano.


O fato é que com essa bizarríssima reforma da previdência nós passaremos o resto de nossas vidas vendendo nosso tempo. Vendendo nossos dias em condições de trabalho cada vez piores. Não tô aqui negando a máxima de que o trabalho enobrece o homem. Tô querendo dizer que pra gente ser nobre a gente precisa ter espaço pra criar, precisa ter a hora de não fazer nada, precisa poder ver o filho crescer ou acompanhar um pôr de sol, se for essa a nossa vontade. Pra ser nobre é preciso ser inteiro, se reconhecer sujeito que deseja e sonha.


Já que é assim, penso que, além de todas as lutas possíveis, ainda precisamos avaliar como estamos administrando o tempo na rotina diária. Quando passo horas e horas nas redes sociais me perguntando quem foi o pivô da separação do José Loreto (quem?) ou vendo como o final de semana de todo mundo tá sendo mais legal que o meu, perco uma baita oportunidade de aproveitar a vida simples, mastigar devagar, sair de bicicleta, ler um pouco, ligar pra amiga cuja voz só tenho ouvido por áudio do zap ou tomar um café, despreocupadamente e sem maiores expectativas. Nem sempre o dia da gente precisa gerar stories no Instagram. E tá tudo bem.


Da mesma forma, quando passamos a achar normal passar um terço de nossos dias em um mesmo lugar, em nome de uma tal ética protestante que só serve a quem tem grana pra comprar nossas horas, passamos a achar igualmente normal voltar pra casa e encerrar o dia sem ter tido sequer uma experiência de prazer genuíno.


Talvez a gente não precise de tanto pra viver. Talvez ter “bagagem leve”, como diz o Mujica, seja uma forma de burlar um pouco esse sistema cruel do qual somos parte. E aí pode ser que, vivendo com menos, a gente aprenda a ver melhor e com mais liberdade o que realmente merece o nosso tempo. Afinal, como disse a raposa pro Pequeno Príncipe: “C’est le temps que tu as perdu pour ta rose qui fait ta rose si importante[1]”. O tempo que dedicamos a algo ou alguém demonstra o quanto aquilo tem valor na nossa vida.


E, com mais tempo e mais leveza, a gente vai ficando mais criativo, mais lúdico, mais esperto, menos vulnerável à luz artificial do shopping e mais aberto ao piquenique, à praça, ao boteco, ao jantar à luz de velas na própria sala de casa. E, sem perceber, consumindo menos a gente pode acabar sendo menos consumido também.


“A vida é o dever que nós trouxemos pra fazer em casa”, repito como um mantra. Quero fazer minha tarefa de casa com capricho. Mario também disse que só os poetas, os amantes e os bêbados podem parar o tempo, nem que seja por instantes. E que das crianças é o tempo quem escapa, justamente porque elas ignoram sua passagem. Leio e acredito. O que poetas, amantes, bêbados e crianças podem ter em comum?, me pergunto. Acho que já sei. O que eles todos têm é coragem.

[1] “Foi o tempo que perdeste com tua rosa que a fez tão importante”, trecho extraído de “Le petit prince”, de Antoine de Saint-Éxupery.


* Extraído do poema “O tempo”, de Mario Quintana.


Juliana Cruz é professora de História, feminista, cervejeira e cassineira apaixonada.

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