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Bagagem, por Giliard Barbosa


Já faz alguns dias que ela está aqui e ninguém a notou. O casal de namorados recostado no pilar fez apenas um desvio: o amor adolescente não tem tempo para essas descobertas. A moça desumanizada que às vezes dorme à porta do banheiro público já há muito notou-lhe a presença. Chegou a dar uma espiada, creio que buscava comida ou dinheiro ou algo passível de troca por comida ou por dinheiro ou por narcóticos que lhe permitissem sobreviver mais um dia à crueza daqui. Há muito a acompanho na batalha injusta da sobrevivência. Infelizmente, não posso lhe oferecer muito mais que um piso úmido e a proximidade do mar, o sonho das gaivotas. Não tendo encontrado nada de relevante – a mala já surrada em nada lhe serviria – a moça sem nome deixou-a ali tal como a encontrou, talvez servisse a outro alguém. Acho bonita essa compaixão intrínseca aos que nada têm.


A permanência quase imóvel da mala ecoava em mim a ausência dele. Todas as tardes, ele iniciava o mesmo ritual: vinha cabisbaixo recostar-se no meu colo para olhar o vai e vem das águas. Os olhos, perdidos no horizonte, tinham sede. A boca nada dizia. Às vezes a água contemplada transbordava no estuário dos olhos que, generosos, me davam também de beber.


É bem verdade que nem todas as tardes o ritual acontecia. Nos finais de semana, ele não vinha. Eu sentia-lhe a falta. Não que as movimentações do mercado municipal não me distraíssem, pelo contrário, às vezes o tempo passava até mais rápido com o ir e vir das canoas, o repassar das anchovas, o passear das famílias sobre as minhas pedras. Mas o vazio desejante dele, capaz de prolongar a duração das horas, me tocava.


Por vezes, víamos juntos o sol se por a um canto da Ilha da Pólvora, os navios deslizando no rosa-alaranjado das despedidas. Havia dias desses em que ele, emocionado, puxava um caderno à mochila e escrevia. Escrevia, escrevia, como se não houvesse tempo além daquele agora e ele estivesse obrigado a tentar registrar aquele instante presente que já se perdia antes que se apagasse por completo. Não sei o que ele escrevia, nunca o leu em voz alta. Mas posso dizer que, estando a sós com ele, pude realizar leituras que sou incapaz de reproduzir, presentes do tempo que se esvaía conosco.


Um dia, ele chegou tardiamente até mim, mais tardiamente do que de costume. Carregava nas mãos uma mala surrada, aparentemente quase vazia. Mas a carregava com certo pesar, como se contivesse o peso do mundo nas mãos. Os olhos sedentos pararam um instante a contemplar as águas e as estrelas que nelas se refletiam. Recordo que achei bonito, isso, nós que só tínhamos partilhado sóis.


Sentou-se, como sempre, ao meu colo, enquanto olhávamos as águas. Mas não repousou: tirou da mala uma corda relativamente curta e fina e a atou a uma pedra que havia se desapegado de mim. Amarrou-a com uma atenção invejável, um trabalho quase de artesão. Fez várias voltas e nós em torno dela e, tendo concluído o trabalho, pôs-se, como Sísifo, a refazê-lo, desta vez utilizando outro pedaço de corda e outra pedra.


Quando finalizou a segunda artesania, suspirou. Olhou de novo para as águas, o olhar dessa vez saudoso como o de uma despedida. Olhou em torno de si, olhou-me a mim. Sorriu, o rio dos olhos a manifestar a esperança de satisfação da sede. Uma cena bonita. Partiu levando consigo parte de mim.



Enquanto conto isso, uma criança curiosa se aproxima do objeto. Um menininho inquieto, com um grande óculos no rosto e olhos sedentos. Ele ajeita as lentes, a boca aberta, a testa ainda pequena um pouco franzida, tamanha surpresa. Faz vento, ele terá dificuldades.

Com cuidado, o menino tenta conter a ventania que invade a mala. Mas nada pode ele fazer contra o vento: a mala se arrebenta, o vento carrega consigo folhas e mais folhas, palavras-pássaro sobrevoando o cais. O menino fascina: não pode conter também ele o desejo daquela contemplação. Extasiados, eu e o menino vemos as palavras dele perderem-se no sem fim dos horizontes. Alcançarão outros sujeitos, é certo. Para mim, permanecerão um encantador mistério.




Giliard Barbosa é um tanto de caos que, ao nascer, recebeu da mãe o nome de um cantor, com um L a menos, pra não complicar. Ordenado pela palavra, o rapaz encontrou na poesia uma forma de cantar a ausência. Professor do Instituto Federal, Giliard tem mestrado em História da Literatura (FURG) e acabou de concluir seu doutorado (UFRGS). Interessa-se pela palavra poética, e seu foco de pesquisa tem sido a escrita de mulheres e(m) trânsitos.

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