Domingo era o descampado de um homem.
A maçã no escuro, Clarice Lispector
Sagrado, o domingo é dia de missa. Seu Jaquim acordou cedo, antes mesmo do sol. Como se tivesse programado os olhos para abriem antes do dia começar. Abriu a janela de madeira verde. Estava escuro. Coçou os olhos esfarelando as ramelas. Lavou o rosto na bacia com água adormecida e fria.
Vestiu as roupas preparadas no dia anterior. Uma calça com vincos. Uma camisa de botão estampada com beija-flores. Um casaco marrom. Tudo passado com ferro à brasa.
A essas horas, já haveria gente pedindo benção, oração e curas na porta da casa de Seu Jaquim. Mas domingo era dia santo. E em dia santo não se benze. Todo mundo sabe disso. Eles geralmente traziam frangos vivos (ou mortos), pães, compotas, vasos de flor e até dinheiro.
“Deus não troca cura por dinheiro”, dizia sempre às pessoas mais afortunadas.
Ele saiu com passos decididos rumo à cidade. A igreja ficava à meia hora de distância que ele percorria com gosto. Sozinho com seus pensamentos. Só Deus saberia o que se passa na cabeça do benzedor. Um jeito estranho de ir balbuciando palavras que ninguém capturava. Ele tinha um jeito de caminhar rebolando. Olhava de quando em quando para cima, como quem se dirige a Deus.
“Domingo é dia de missa”, disse Jeremias ao filho.
Ele segurava com força o braço do menino, quase o arrastando. Jaquim seguia quieto. Não era nada esperto responder ao pai. Mas não tinha forças nas perninhas. Eles saíam para a missa sem nada no estômago.
“Bom dia, Seu Jaquim!”, disse um conhecido na estrada.
“Dia!”, disse sorrindo.
A igreja estava quase vazia. Pouca gente era religiosa a essa hora. O padre, um senhor de túnica branca e cabelo igual à túnica, caminha devagar para o altar, segurando o missal, vermelho de capa dura, debaixo dos braços.
Como não tivesse quem cantasse na primeira missa do domingo, pela falta de fiéis, ela é chamada de missa seca. Uma celebração sem cantoria. Uma festa sem banda, apenas com os passos ritmados das pessoas. Levantar. Ajoelhar. Fazer reverência. Erguer os braços. Sentar. Tudo recitado e silencioso. Sem pompa, sem incenso, sem melodia. Não era raro serem apenas Seu Jaquim e o padre.
Seu Jeremias sentou na primeira fileira de bancos da igreja. Dessa vez, eram apenas ele, o filho e o padre. O sacerdote sendo bastante jovem, cabelo cumprido e preto, a casula romana dourada com pedrarias formando uma cruz que brilhava. Jaquim ficava olhando o paramento do padre, impressionado. Contava uma pedrinha de cada vez e de novo. O sono e a moleza vinham.
O padre de costas para os dois. A missa, em Latim, parecia um amontoado de palavras que Jaquim não compreendia. Enquanto o padre recitava, ele tentava capturar as palavras e repeti-las, mas elas eram pássaros ariscos. Vinham e sumiam logo em seguida. Um tipo de pássaro que Jaquim não via em lugar nenhum.
A tarefa dos dois era esperar a consagração acabar. Rezavam o rosário, até o momento de receber a comunhão. Era difícil não ter sono. E a cada cochilo de Jaquim, o pai dava um beliscão.
A fome apertava no estômago, mas a missa não acabava. Seu Jaquim era paciente. Com os braços erguidos, recitando o pai nosso no seu português, aguentava a fraqueza nas perna cansada. Aquela que ele mancava desde criança. Dizem que foi coice de mula.
No meio do caminho, Jaquim ia encontrando pedrinhas brilhantes. Eram iguais às da roupa do padre. Ele guardava com muito cuidado cada uma no bolso da calça.
Jeremias deu um safanão no menino.
“O que é isso?”, disse.
“Pedrinhas que brilham…”, respondeu abaixando os olhos.
“Largue mão disso, menino.”
O pai deu um tapa na mão de Jaquim, fazendo com que as pedras caíssem no chão.
“Por que guardar elas, hein?”, resmungou Jeremias.
“Por que não!?”
O homem deu outro tapa na mão do garoto, dessa vez nenhuma pedra caiu no chão.
O menino olhava o reflexo do sol nas pedrinhas que brilhavam no chão empoeirado, cada vez mais distantes. Jeremias agarrando o braço do filho, levando-o.
Depois do almoço, enquanto o pai tirava um cochilo na rede debaixo da árvore que fazia sombra na casa, Jaquim foi pé por pé para o quarto. Havia uma cama de casal, uma janela acima da cama, um baú grande e um roupeiro. Ele abriu, com todo o cuidado, o baú que rangeu. Retirou um vestido azul, uma saia vermelha com miçangas e um sapato preto.
Apertou o tecido contra o rosto. Tinha cheiro de roupa guardada e naftalina. Mas era bom. Talvez o mais próximo que teria chegado do cheiro da mãe, morta quando ele nasceu.
Jaquim encostou a porta do quarto e fechou a janela. Tudo ficou escuro. Vestiu a saia e calçou o sapato. Começou a dançar como se estivesse valsando num baile. Nunca tinha ido a uma festa assim. Tudo vinha da imaginação. Ele acreditava que em algum lugar, aconteciam bailes onde as pessoas valsassem e fossem alegres.
O quarto estava escuro e não havia espelho algum. Somente as frestas da janela de madeira permitiam que feixes de luz revelassem um sorriso na boca de Jaquim. Era como flashes mostrando uma alegria secreta e entrecortada. Tudo em silêncio. Dava para ouvir o som do tecido roçando no chão, como as folhas das plantas.
Estrondo. As mãos do pai arrebentando a janela do quarto. Ele encarou Jaquim com olhos de sol. O menino mal teve tempo de desfazer o riso na boca. Não teve tempo de sentir medo. Apenas as pernas demonstraram uma fraqueza que quase o derrubaram.
O pai entrou pela janela. E avançou para cima do filho.
Ele agarrou Jaquim pelo braço e o arrastou até a porta de casa. Foi dando safanões, socos e chutes. Jaquim não chorou. “Homem não chora”, teria dito Jeremias alguns meses antes. Quem chorava mesmo era o pai, roxo e ofegante.
O motivo de apanhar não era segredo para Jaquim, ele apanhava o tempo todo. Mas havia algo de aterrorizado na cara do pai.
Chutou tanto a barriga de Jaquim que ele pôs a vomitar todo o almoço: o frango, o arroz, o feijão. O gosto amargo na boca não era nenhum problema.
Os cachorros correram alvoroçados. Vieram e começaram a latir para Jaquim, mostrando os dentes. Decerto pensavam que se tratava de um bicho que seu Jeremias estava caçando. Morderam o menino nas costas e nos braços. O pai não fez nenhum gesto para afastá-los. Apenas continuou a socar e a chutar.
Seu Jaquim, sentado na mesa da cozinha, ajeita as pedrinhas brilhantes que recolheu pelo caminho, o mesmo de sempre. Agora tinha uma coleção delas numa mesinha que ficava no quarto. Enfeitavam um pequeno altar com santos, terços, uma vela e uma foto. Uma mulher, negra, com lenço na cabeça, muito jovem. Um homem alto, negro, de barba e cabelo raspado. O casal fazia pose na foto em preto e branco. No fundo, uma igreja antiga: a basílica de Nossa Senhora Aparecida. A única foto que tinha dos pais, na única viagem que eles dois fizeram depois do casamento.
No domingo, diferente dos outros dias, não tinha visita. O silêncio do meio dia era quente e claro. Um horário que a memória faz sofrer com um suor na testa e uma lágrima no olho.
“Foi coice de mula”, disse Jeremias para d. Sebastiana, a benzedeira que morava por perto. Ele a trouxe para ver o menino.
A velhinha se curvou para Jaquim estendido na cama, todo esfolado. Pegou ele no colo e sentou. Passou os dedos nodosos pelas feridas.
“Conta o que aconteceu…”, cochichou no ouvido dele.
Uma lágrima escorreu do olho aberto, vidrado.
“Ele foi mexer com mula braba, Sebastiana…”, respondeu o pai. “Domingo é dia santo, não tinha nada que ir mexer com as criação de Deus.”
“Essa mula é amaldiçoada…”, disse ela olhando fixo para o homem.
Seu Jaquim largou as pedrinhas e foi até o quarto. Encostou a janela. Somente as frestas deixavam a luz entrar e espiar o cochilo do benzedor.
Sagrado, o domingo é dia de missa. E, também, dia de afastar as memórias dormindo. Dia de descanso.
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