Bem, eu sempre fui um cara meio sozinho. Não que eu goste, não que eu não goste também. Nunca soou muito como uma opção para mim: ou sou estranho demais para as pessoas, ou as pessoas são estranhas demais para mim. Doía mais quando eu era mais novo, eu acho. Tudo dói mais quando somos mais novos, como se tudo fosse maior e como se tudo fosse infinito. Depois de um tempo, vai deixando de fazer tanta diferença. A vida vai passando e vamos até que criando um certo apreço pelo nosso estranhamento. Um mecanismo de defesa, talvez. Não importa. Fazemos o que podemos para seguir vivendo, isso não é novidade para ninguém. Porém, há uma diferença: sozinho entre as gentes e sozinho, bem, estando sozinho mesmo.
Era para ser um ano muito especial: primeiro ano fora de casa, sozinho em outra cidade. Um pouco de romantismo? Provavelmente, também não importa (quem não se utiliza de um pouco de romantismo para dar mais sentido às burocracias da vida?). Eu já estava ficcionalizando tudo, é claro, como me é de praxe. Talvez, no fundo, se eu for bem sincero comigo mesmo (coisa que dificilmente sou), eu até cultivava alguma esperança de encontrar outras pessoas sozinhas por aí, me sentir menos estranho... Sabe como é: sozinho por opção, até que eu tenha, de fato, uma opção. Bem, pensando melhor a partir do que nos aconteceu depois, talvez eu tivesse realmente uma opção, pois definitivamente passei a não ter quando a pandemia tomou conta desta farsa que chamamos país. Independência ou morte (risos): trancado em um apartamento na capital do meu estado, sem conhecer ninguém e cursando um curso em EAD, ou seja, meu único contato humano seria ouvir vozes sem rosto oscilarem no meu computador com a péssima conexão da internet. Livre... infelizmente.
Além disso, é preciso dizer: há algo de peculiar no sul deste país. O sonho tropical não chega até aqui, se é que chega mesmo em algum lugar. Mas aqui o inverno ainda castiga a alma; os jornais deveriam inventar um jeito de medir e divulgar a mudança nos graus de solitude. Quanto menos graus de temperatura, mais graus desse sentimento quente de estar sozinho. É sério, na minha cabeça tem todo o embasamento científico, alguém avisa os climatólogos desse novo ramo que eu descobri. Pois na capital do meu estado faz muito frio. E por isso faz muita solidão também. Algo que eu só descobri (e que talvez só seja possível de se descobrir) quando eu estava finalmente lá (aqui); neste apartamentinho que, apesar de pequeno, ainda parece assustadoramente grande para mim. Isolado e aguardando por uma normalidade que nunca vem e que não sei mais se já vivi.
Pois foi aí, no dia mais frio do ano, que veio a vontade súbita de “retomar um velho hábito” (assim mesmo entre aspas como tudo que fazemos em meio à pandemia é entre aspas). Visitar museus. Claro, nunca tive a chance de visitar esses museus majestosos de arte que circulam como sonho pelas cabeças de gente estranha como eu. Minha cidade natal, um lugar peculiar, diga-se de passagem, me oferecia a experiência singular de explorar as minúcias de um museu da cidade, de um museu oceanográfico e de um pequenino museu de arte sacra (peculiar, eu disse). Era tudo que eu precisava. O importante era vagar, fisica e mentalmente. E como esses lugares não eram dos mais visitados, eu podia facilmente encarnar o papel da personagem solitária e atuar por algumas horas espairecendo por entre outras sombras tão bem preservadas nos museus de minha cidade. Fazia-me bem, dava sentido histórico e estético para minha solidão. Despertava aquela parte narcisista que sempre reside em nós e me fazia perguntar se algum dia teria a honra de ser uma sombra esquecida em um museu também. Sinto falta disso tudo, era mais fácil ser sozinho na minha cidadezinha, afinal (quem diria).
Mas é claro que minha ida à capital vinha acompanhada da pretensão dos grandes museus – talvez mais frequentados, é verdade, o que tirava um pouco do charme, mas, pelo menos, poderia enquadrar minha falta em um contexto maior. Uma pretensão prontamente frustrada, como tudo mais que remete a essa mudança desastrosa. Tinha até esquecido dessa possibilidade, mas a solidão da noite mais fria evidentemente traria de volta esse desejo. Em um primeiro momento, com um gosto amargo, mas, logo em seguida, como uma possibilidade “real”: um museu virtual. Como não tinha pensado nisso antes? Quer dizer, eu tinha. Mas descartava a ideia logo que surgia por não me parecer genuína o suficiente (que ironia, o que há de genuíno nessa minha vida, afinal?). Conhecer virtualmente o acervo do museu da capital... até que podia ser um bom remédio para solidão. Alimentá-la de sentido, como há muito não fazia, e poder, finalmente, conviver melhor com essa corrente fria que nos atravessa os ossos por aqui e nos revira a falta de dentro para fora.
Eu quase podia me enganar. Apagar as luzes do meu quarto, me embriagar suficientemente e fazer questão de afastar o meu celular do cômodo (como se alguém fosse realmente me salvar com alguma intromissão): um verdadeiro ritual de imersão em uma tela de notebook (até que guardava alguma mística). As salas estavam todas vazias e havia o privilégio absoluto de observar as obras minuciosamente, de expandi-las e de sondá-las com os olhos em cada detalhe, quase como que podendo tocá-las (impulso sempre negado) se não fosse pela barreira intransponível da virtualidade. Tudo impecável demais. De certo, a visita presencial ao museu seria bem diferente, pois esses perfeccionismos não remetem à vida. As coisas do mundo nunca estão assim no lugar onde deveriam estar, ainda mais para o nosso uso. Mas, bem, eu não estava em condições de reclamar da completude. Me renderia à artificialidade, atuaria aquela peça na exceção do meu quarto e, não tarde, se tudo desse certo, me perderia no papel.
Vaguei por horas pelo museu, varando a madrugada. Deixava meu olhar se perder pelas imagens, às vezes expandia na tela uma pintura qualquer, às vezes (na maioria das vezes) apenas fingia estar realmente naqueles espaços, naqueles cômodos vazios cercados de arte. De fato, era mais sobre me sentir fora de mim mesmo e de minha bolha por um momento. Estar em um lugar em que minha solidão pudesse ser reconhecida (estar sozinho em casa é estar sozinho se não há ninguém lá para apontar sua solidão?), pois já não aguentava mais a mesmice de viver comigo. Apertando flechinhas no meu computador para trocar de cômodo; eu me sentia em movimento no mundo, da forma que podia. Tudo tão precário entre cópias de cópias da vida.
Até que ela apareceu. Sentada, sozinha, em um banco sem encosto, daqueles bancos tipicamente desconfortáveis de museu, admirando as pinturas na parede a sua frente. Por um momento fiquei na dúvida, aliás, se não era ela (e seu banco) uma pintura também. Uma pintura estranhamente posta no centro da sala, atravancando o caminho. Não tinha como dar zoom (um erro?) na imagem. Me aproximei fisicamente da tela, no escuro do meu quarto, como que querendo sugar toda a luz daquela cena com meus olhos. Ela era linda. Mas não era simplesmente sobre ela. Era sobre ela naquele espaço, existindo daquele jeito, naquele momento. Transbordando uma solidão que inundava a sala, fazendo submergir os quadros e me colocando à deriva em um museu de arte, como que perdido em um barquinho precário em meio a um oceano de sentido. Quem era ela? E como havia alguém na miragem do meu museu virtual?
Por acaso, olhou para mim (sim, para mim, como se me visse perfeitamente por trás da tela e pudesse me enxergar em profundidade) e sorriu gentilmente, como que pega de surpresa por se deparar com mais alguém na sala. Atrapalhado, como de praxe, não sorri, ou melhor, sorri um sorriso bobo atrasado, quando ela já voltava a admirar os quadros. A naturalidade da cena me assustou (me encantou). Ela sabia que eu estava ali e continuava tranquilamente a observar as obras? Quem eu era para ela? Tudo parecia tão real. Definitivamente não era uma pintura. Afinal, a sala estava repleta de pinturas e nada se comparava em vivacidade a moça sentada ao banco, além do fato óbvio de que ela havia se mexido na minha frente. No microcosmos do meu computador (e da minha solidão), cabia mais alguém, alguém mais real do que eu, alguém tão presente e tão vivo.
Gastei um tempo meio atordoado sem saber ao certo o que fazer. Olhando a tela como que esperando que ela se virasse para mim mais uma vez. Não virou. Mas eu percebia como inclinava a cabeça para o lado vez ou outra para vislumbrar de ângulos diferentes detalhes nas pinturas que talvez eu não seria capaz de perceber. Foi apenas quando meu peito apertou forte com a ideia assustadora de que ela poderia não voltar mais a olhar para mim e assim me reconhecer enquanto uma pessoa logo ali ao seu lado que corri toscamente para pegar meu fone de ouvido (com microfone como qualquer outro fone mixuruca de celular) e tentar alguma comunicação. Alô. Alô? Quem é o idiota que aborda uma pessoa estranha na rua com um alô... Bem, eu não estava na rua e parecia propício tratar toda aquela situação com certa virtualidade (mentira, eu já não estava mais certo sobre a diferença entre o mundo e os seus simulacros agora).
Ela voltou-se para mim outra vez. Olhou nos meus olhos mais demoradamente e sorriu de novo, mas sorriu diferente. Eu entendi de imediato que ela não usaria palavras, como se estivesse para além delas. Seu olhar foi como um pedido de silêncio. Ou melhor, como um convite ao silêncio. E eu, que sempre fui afeito a verborragias, senti-me desmoronar por completo. Um tipo de arte diferente brotava daquele rosto, um tipo de arte que desarma os dizeres possíveis e alcança uma linguagem mais profunda. É estranho, não consigo dizê-la sem soar apaixonado e, quem sabe, pode-se dizer que eu estava apaixonado naquele exato momento e naquele exato lugar, desde que com a ressalva de que estava apaixonado de uma forma exatamente diferente do que se entende por estar apaixonado: era uma paixão difusa, uma vontade dispersa de ao mesmo tempo tê-la ao meu lado e de mantê-la alheia. Não queria demandar nada e sabia que não tinha nada para dar. Era apenas sobre a beleza de poder experienciar a dois um museu de arte (e pela primeira vez, para mim, a arte pesava mais do que o museu).
Pareceu dar-se conta que a outra metade do banco em que sentava continuava vazia, enquanto eu me perdia nos meus devaneios. Mais um olhar complacente – e tive certeza que esse seria o último, pois não perderia mais tempo comigo e com esse vício de usar as palavras. Chamou-me com um leve movimento de cabeça e, dessa vez, não hesitei. Fui tragado para dentro da tela. Devorado pelo museu virtual e finalmente feito mais uma sombra insignificante para a história. Sentei-me ao lado dela sem dizer nada (ela também não disse coisa alguma). Fizemos uma promessa em silêncio: abandonar o mundo e fazer daquilo que eu chamava solidão nos velhos tempos (de alguns segundos atrás) apenas uma forma de ecoar a mudez das obras de arte. Eu, ela e todo mundo que sobrevivesse ao fim para nos encontrar - pois estaremos lá, aguardando por outros, se o museu um dia voltar a abrir.
Lucas Zafalon Garcia (1998) nasceu em Rio Grande (RS) e sofre, desde a epigênese da infância, de verborragias – pensa em renovar o homem usando borboletas, pois sabe que um galo sozinho não tece uma manhã. Formou-se, portanto, como consequência direta dessa condição, em Letras Português-Inglês (FURG) e atualmente é mestrando em Letras (UFRGS), na área de Estudos de Literatura, em que almeja estudar a literatura em tensão com a teoria social, a filosofia e a psicanálise. Publicou crônicas esparsas no falecido Jornal Agora e é autor do livro de contos Esta nossa tautologia, a ser publicado pela Concha Editora em 2021. Além disso, vez ou outra, compartilha alguns rascunhos poéticos despretensiosos em seu perfil do Instagram (@luczafalon).
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