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Grupo de risco

Quando Ela virou-se na cama pela manhã, ainda sonolenta, deparou-se com a Outra: aquilo lhe causou um mal estar inominável – era bióloga em quarentena e não tinha, para esse sentimento, classificações. Não que desconhecesse (completamente) a Outra, é evidente: trocavam afetos há mais de nove anos e moravam juntas em união estável já fazia sete. Por isso, talvez, aquele estranhamento fosse tão... estranho. Como dividir amorosamente uma juventude com uma pessoa e, de repente, pegar-se perguntando o que essa mesma pessoa faz em sua cama? A Outra dormia profundamente, nunca fora de acordar cedo. Ela sabia disso, aliás, sabia muito bem, pois encontrava-a em sono profundo todas as santas manhãs, bem cedo, quando se levantava com sol para trabalhar em sua rotina obsessivamente regrada.


Mas não era mais assim tão cedo. Nove horas. Para Ela, nove horas era sinônimo de férias e, visto que as aulas estavam suspensas, permitiu-se o luxo. Mas a Outra continuava lá. Esparramada na cama, sem pretensões de acordar, e com a boca aberta como que escancarando um abismo – do canto dos lábios escorria a baba que amarelava os travesseiros e do fundo da Outra vinha aquele hálito forte e enojante. Ela pensou que não deveria mais acordar assim tão tarde fora de época. É, talvez fosse isso que lhe tivesse causado aquele mal estar... Levantou, foi ao banheiro, lavou o rosto. No espelho, perdeu-se, por um momento, em suas olheiras. Engraçado, as olheiras também sempre estiveram lá (como era de se esperar d’Ela), mas, da mesma forma, as manchas embaixo dos olhos incomodaram-na também mais do que o normal, como que se tivesse um vislumbre alarmante do fato de que estava exausta. Respirou fundo. Foi fazer o café, como todos os dias, e começar a estudar.


A Outra acordou algumas horas mais tarde, quase meio-dia. Encontrou a cama vazia e desarrumada como sempre. Levantou-se e foi à cozinha, ainda descabelada e enfestada de ramelas. Não sabia ser antes da primeira caneca de café. Passou pela mesa da sala (sem perceber que, dessa vez, Ela sentava-se lá, sublinhando seu enorme livro de estudo com todo o cuidado de traçar linhas perfeitamente retas) e alcançou a cozinha quase como que arrastando os pés. Lá se serviu do resto de cafeína que sobrevivia na cafeteira já com um gosto de queimado. Retornou à sala, indo em direção à janela para observar a rua (querendo saber se ainda haveria algum movimento em tempos pandêmicos) e passou novamente (sem perceber) por sua companheira de anos. Observou sonolenta o céu carregado, pensando, com certa indiferença, que, no fim das contas, não faria muita diferença se caísse mesmo o mundo já que... Interrompeu o pensamento de súbito e virou-se no lugar.


Ela a encarava, de cabeça erguida do livro, à distância de alguns passos – notou, é claro, a Outra passando por ela duas vezes sem se dar conta de sua existência (e não ficou muito satisfeita com a ideia de ser tratada como mais um objeto na casa). A Outra a encarou como quem faz uma descoberta de algo que no fundo sempre soube. Em silêncio, trocavam olhares. Vez ou outra, a Outra inclinava o rosto para baixo e observava sua caneca de café antes de retomar o vislumbre alarmante da pessoa na sua mesa de jantar — agora tudo fazia sentido, sabia, então, de onde surgia o café já queimado de todas as manhãs na cafeteira de sua cozinha. Não soube bem o que dizer. A interação normal das duas se limitava a alguns ruídos trocados com automatismo no final das noites, quando se deparavam uma com a outra na hora de deitar-se à cama para dormir. (E depois ambas apagavam mais rápido do que trocavam palavras). Agora, no entanto, tudo indicava que parecia de bom tom que verdadeiramente conversassem. Afinal, estariam condenadas a conviver de forma intensa por um tempo indeterminado. A Outra, mais irreverente, tomou a iniciativa.


O que ela disse? Ela pensou. Não sei. Melhor dizer algo de volta.


O que ela disse? A Outra pensou. Não sei. Melhor ignorar. Sorrir e balançar a cabeça, isso, sorrir e balançar a cabeça.


Depois da troca frustrada de “palavras”, as duas, aliviadas (ou algo assim), desfizeram o contato dos olhares e forçadamente tentaram voltar para seus afazeres. Ela inclinou o rosto para o seu manual pesado sobre plantas outra vez e tentou passar os olhos pelo grupo das angiospermas enquanto lhe pesava a cabeça. Plantas que se caracterizam por... Que coisa estranha, tenho quase certeza que ouvi direito, mas eu não entendi o que ela quis dizer. Com o desenvolvimento do ovário, formam-se frutos após o... Não, não foi bom dia, parecia bom dia, quer dizer, é lógico que fosse bom dia, mas não soou como bom dia. Devido a isso, tornou-se o grupo de plantas com maior número de... Será que ela estava rindo de mim? Parecia que ela estava rindo de mim. São plantas que apresentam vasos condutores e, por isso, chamadas... Que irritante, inventando palavras, ela sempre faz esse tipo de coisa e aquele sorriso... A presença de fruto envolvendo a semente... É óbvio que ela estava rindo de mim, com certeza, ela estava rindo de mim.


A Outra deitou-se novamente na cama, porque, de fato, não tinha outros afazeres – o bar em que trabalhava todas as noites estava proibido de abrir e ela ficaria os próximos dias aguardando por novidades e torcendo para continuar recebendo. Buscou o celular na cabeceira da cama e pronta para imergir em alguma rede social veio-lhe a pontada de um incômodo. Quem sabe, bom dia? Viu a foto de uma colega de trabalho na praia. Faz sentido que fosse bom dia, é isso que se diz para alguém que recém-acordou, não é? Filhotes de cachorro correndo pelo pátio, tropeçando uns nos outros. Mas, sabe, não parecia bom dia, não soou como bom dia, foi uma palavra estranha. Um prato de lasanha, um bolo vegano de chocolate, um drink exótico. É capaz d’Ela estar me zoando, é tão típico dela fazer isso. Um meme do presidente virando jacaré. Ela se acha tão perfeita por ter acordado cedo para estudar, é óbvio que ela estava me zoando, só porque acordei tarde, é tão típico dela fazer isso, nossa!


Mais irreverente, a Outra voltou para sala. De supetão: Olha só, se vamos passar os dias juntas de agora em diante, é bom que tu entenda bem que somos diferentes e eu não sou obrigada a... O que tu tá falando? Não tem graça, para de falar desse jeito idiota, não tem graça... Como é? Não deu ainda, sério? Bem infantil pra quem se acha tão inteligente... Cala boca, cara! Cala boca, que coisa irritante, é óbvio que tu vai passar teu tempo livre inventando uma língua ou sei lá que outra idiotice tu tá fazendo... Tu acha que tem graça ficar me esnobando falando em grego ou qualquer outra língua inútil que tu tenha aprendido pra se achar melhor do que os outros?... Eu não tenho tempo para isso, sério. Eu estudo sabe, eu faço alguma coisa da minha vida... De boa, eu não tenho tempo pra isso, é muito absurdo pra uma segunda-feira... Continuaram trocando algumas frases ininteligíveis por mais algum tempo até se darem por vencidas do fato de que algo estranho as impedia de se comunicar. Era como se acordassem, de repente, falando línguas diferentes e não pudessem mais fazer sentido uma para outra.


Ah, foda-se! A Outra saiu em passos firmes e voltou para cama. Que merda! Ela fechou o livro com rispidez. A Outra, no quarto, olhava para o teto, deitada na cama, respirando pesado. Ela, na sala, encarava a parede a sua frente, sem reação. O silêncio do apartamento disfarçava as consciências babélicas. As duas deixavam reverberar a cena na intimidade de suas quietudes, escutando infinitas vezes as vozes dissonantes que se atravessavam sem conseguir propriamente se encontrar. No limiar entre as formas e os sentidos, havia um borrão escuro, cada vez mais escuro, cada vez mais largo, expandindo-se, tomando conta de tudo. Uma espécie de vírus que invadia e corrompia a língua própria que construíram em nove anos de relacionamento. Assim de repente. De repente? Quem sabe fossem infectadas assintomáticas, carregando consigo, compartilhando, já há muitos anos, um corpo estranho, grave, que apenas esperava o momento inoportuno para se manifestar. E se manifestou. Intensamente. Ou quem sabe sempre fizeram parte de um grupo de risco e estavam condenadas a se contagiar e a adoecer em algum momento. Independentemente do que fosse, não parecia que se recuperariam sem deixar sequelas.


E agora? Teriam que disputar o território do apartamento. Evitar o agravamento da doença que poderia vir da continuidade do contato de uma com a outra. Mas por quanto tempo? Por quanto tempo poderiam fugir se já se carregavam mutuamente? Passaram o resto do dia se esquivando. Tentando, desesperadamente tentando. Ela, que sabia, no fundo, desde o incidente verborrágico, que não conseguiria mais se concentrar, continuou, assim mesmo, forçando o trabalho (como sempre fazia). Tinha um planner, seguiria o planner – em sua cabeça, a regra era clara e era assim que Ela funcionava. De fato, não passava de uma encenação ridícula. Não sabia ao certo quem tentava convencer (se a ela mesmo ou se a alguma outra figura imaginária que atormentava sua mente), mas, de certo, não convencia a pessoa alguma. Usava da desculpa que estava ocupada demais (mesmo em suspenso na quarentena) para não comer, não beber, não ir ao banheiro, não trocar de roupa, não escovar os dentes, não falar, se possível não pensar (não era possível), não respirar, enfim, nada que lhe pudesse lembrar de que estava viva. Abria o notebook, encarava sua tese de doutorado pela metade, fechava o notebook. Levantava, dava uma volta à mesa, sentava. Abria a caixa de e-mails, encarava a página de entrada interminável de demandas por responder, fechava a caixa de e-mails. Levantava, dava uma volta à mesa, sentava. Abria livro, fechava livro. Encarava dados, gráficos, tabelas, nada fazia sentido. Três ligações não respondidas do orientador, discava o número, cancelava a chamada. A Outra, por sua vez, como mulher prática que era, calou a angústia com mais facilidade: dormiu o dia inteiro.


Assim atuaram até que a noite caísse e o espaço do apartamento parecesse cada vez menor e mais apertado; o planner chegou ao fim (sem ser começado) e o sono forçado se esgotou (as pálpebras abriram-se num salto). A partir daquele momento, a sentença estava dada: o reencontro era incontornável. Ela e Outra teriam que (tentar) trocar palavras mais uma vez, antes que o buraco negro do silêncio deglutisse o universo inteiro das duas. A Outra, normalmente mais irreverente, estava paralisada, sabia, no fundo, qual era o peso de cada dizer incomunicável. Acordou e se manteve deitada sem conseguir tomar a coragem de encarar os fatos outra vez. Ela, normalmente incapaz de encarar os fatos de frente (tipicamente cientista), depois de alcançar o seu limite, atravessou o corredor do apartamento, rumando da sala até o quarto das duas. Foi em passos receosos, é verdade. Curiosa situação de se ter medo de ir em direção ao já inevitável. Era tudo apenas uma questão de colocar o desconforto em palavras. Palavras que servissem para as duas, no entanto. Pois não se pode comunicar esse tipo de coisa sozinho.


Ela entrou no quarto. Estavam à meia luz: por entre as cortinas entreabertas, rompendo a escuridão da lâmpada apagada, o luar platinado iluminava o espaço, simulando, no ambiente recluso e quarentenado, a noite de alguns bons anos atrás em que selaram em uma festa ao ar livre (nos tempos em que ainda havia ar livre) o início oficial de um relacionamento. Nenhuma das duas mulheres atreveu-se a falar, mas nem por isso ficaram em silêncio. Começaram pela troca profunda de olhares, pois entendiam que teriam que refazer toda a história da linguagem. Antes que reinventassem o Verbo, refizeram todos os passos da gestualidade humana. Tocaram-se, sentiram-se, compartilharam o revivenciar de toda uma trajetória sentimental. As coisas, aos poucos, iam voltando a fazer mais sentido, retornando ao reino da língua. Das línguas. Beijaram-se como há anos não se beijavam. Nos gostos uma da outra foram recategorizando os vestígios do passado. Causas e consequências tomando forma. Sorriram. No quarto à meia luz da lua, com as faces quase encostadas, sorriram sinceramente uma para outra. Estavam recuperadas, tudo havia se resolvido.


— Ana.


— Beatriz.


Em um abraço, terminaram.



Lucas Zafalon Garcia (1998) nasceu em Rio Grande (RS) e sofre, desde a epigênese da infância, de verborragias – pensa em renovar o homem usando borboletas, pois sabe que um galo sozinho não tece uma manhã. Formou-se, portanto, como consequência direta dessa condição, em Letras Português-Inglês (FURG) e atualmente é mestrando em Letras (UFRGS), na área de Estudos de Literatura, em que almeja estudar a literatura em tensão com a teoria social, a filosofia e a psicanálise. Publicou crônicas esparsas no falecido Jornal Agora e é autor do livro de contos Esta nossa tautologia, a ser publicado pela Concha Editora em 2021. Além disso, vez ou outra, compartilha alguns rascunhos poéticos despretensiosos em seu perfil do Instagram (@luczafalon).

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