Roma (México/EUA, 2018) é o filme mais festejado do ano. Venceu prêmios de associações de críticos em Los Angeles, Nova Iorque, Chicago, Toronto. Seus cartazes e trailers reúnem mais estrelas que toda a constelação de Hidra. Com três indicações ao Globo de Ouro, que acontece neste 6 de janeiro, o longa ainda pode fazer história como o primeiro produto original da Netflix a chegar às principais categorias do Oscar.
Agora, cá entre nós, ele merece todas essas láureas?
A resposta é um direto e retumbante “sim”. Alfonso Cuarón, que já nos presenteou com Gravidade, Filhos da Esperança e Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, se supera e realiza aqui a sua obra mais profunda e pessoal. Além de dirigir, o mexicano encarnou o marido de aluguel: também escreveu, fotografou, montou e produziu o filme. A história é um fiapo, e o cineasta não precisa de muito mais que isso para nos arrebatar do início ao fim. São, basicamente, fragmentos de memória da infância de Cuarón costurados a uma trama de ficção onde uma empregada doméstica vai percebendo que o seu lugar no mundo é muito maior do que imagina.
O filme se passa no início dos anos 1970, no bairro Roma, na Cidade do México, onde acompanhamos o dia a dia de uma família de classe média. Cleo é uma doméstica que trabalha na casa de Sofia, mãe de quatro filhos e que sofre com a constante ausência do marido. Pessoa reservada e de modos econômicos, a empregada faz de tudo para ajudar a patroa a cuidar das crianças, a quem ama como se fossem seus próprios filhos. Quando Cleo se descobre grávida e abandonada pelo primeiro namorado, passamos a acompanhar como a sua mentalidade vai se transformando com o passar do tempo. As duas mulheres lutam com essa e outras mudanças no lar e também na cidade, que é tomada por passeatas de estudantes e violentas milícias do governo.
A figura ausente do pai, um homem que dedica mais atenção e cuidados ao próprio carro que à família, salta aos olhos do espectador. Aliás, praticamente toda figura masculina em cena se destaca por sua covardia, desdém ou capacidade de abandono. Elas comandam a festa, são donas do próprio nariz, e Cuarón não esconde isso um minuto sequer.
O realizador percorreu o México até encontrar a intérprete ideal para Cleo. A honra coube a uma estreante, a professora infantil Yalitza Aparicio, que entrega uma performance contida mas sensacional. Com pouquíssimas falas (inclusive, algumas no curioso idioma mixteca), a emoção da personagem é transmitida basicamente pelo olhar hipnótico de Yalitza.
A narrativa contida, sem firulas, acaba conferindo um tom amorosamente desajeitado a toda a produção. O espectador é convidado a entrar no filme, rodado em tela larga e num preto-e-branco majestoso, e ali ele enxerga o que bem entender.
Aqui e ali, o diretor vai salpicando a trama com referências à própria juventude. Há inclusive a exibição de um trecho de Sem Rumo no Espaço (1969), clássico B de ficção-científica que acabaria levando o menino que queria ser astronauta a fazer um filme sobre o espaço, e com ele ganhar os maiores prêmios da indústria do cinema. Momentos assim fazem de Roma um filme verdadeiro, feito com o coração. A cena do incidente na praia é uma das mais fortes e bem orquestradas dos últimos tempos, um plano-sequência que aproveita magistralmente a luz natural e evidencia o assombroso domínio técnico de Cuarón.
Em essência, Roma é uma obra sobre as mulheres e mães que fazem o mundo girar, e a independência dos homens em suas vidas. É também sobre o amor se sobrepondo às eventuais humilhações na relação empregador-empregado. Quer coisa mais bonita e atual do que isso? Que venha o Oscar, Señor Cuarón.
Fernando Halal é jornalista e fotógrafo, apreciador de rock, cinema, churros e, naturalmente, vídeos de bichinhos.
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