Queria adotar cinquenta gatos. Gatos de rua, como eu: sujos, pestilentos, maleducados, sem pedigree. Tirar deles as pulgas, a fome, o medo da mão humana, mas nunca a ferocidade. Queria adotar cinquenta gatos. Não tê-los, não fazê-los filhos, não ridicularizá-los com nomes pomposos, não ofendê-los com diminutivos. Queria adotar cinquenta gatos. Comer rodeada de gatos, deixar que os gatos lambessem minhas orelhas, minhas vasilhas. Dormir uma ilha: cercada de gatos por todos os lados mais dez por cima. Queria adotar cinquenta gatos. Saltar gatos para dar um passo, qualquer lugar para onde olhasse gato, gato e gato. Aprender a miar até que a fluência fizesse esquecida a linguagem humana, qualquer palavra, mesmo gato, resumida a sonoridade da pronúncia felina. Queria adotar cinquenta gatos. Dar a eles minha casa. Viver o exercício inverso da colonização: cavoucar areias, escalar armários, afiar as unhas na fragilidade dos estofados. Queria adotar cinquenta gatos, brigar por caixas, fugir por frestas, romper com as cartilagens articulatórias, com as leis da física, tornar o corpo líquido. Queria adotar cinquenta gatos. Desbravar telhados, praticar com eles a caça esportiva. Regurgitar uma bola de pelos de trezentos e cinquenta gatos e depois dormir sobre o cetim das almofadas me sabendo merecedora de todo o conforto, de toda a luxúria, toda a mordomia. Por ora estou com três gatas. Três é um trezentos à espera de zeros. Os pelos das pernas não depilo há cinco meses, tampouco as axilas. Há dois cresço bigodes ー antes buço. Amanhã abandono as virilhas. O segredo do ronrono é saber vibrar o ar quente na barriga.
Sobre Ju Blasina: Nascida em Porto Alegre, crescida em Rio Grande, Ju Blasina é poeta e feminista. Cursou biologia e letras pela FURG. Publica em e-zines e jornais de sua região desde 2009. Lançou dois e-books independentes (2010 e 2014) e seu primeiro livro, 8 horas por dia, pela Concha editora em 2017.
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