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Cura para o otimismo

Atualizado: 9 de set. de 2020

Aqui dentro, um quarto onde nunca a luz do Sol alcança diretamente. As paredes cinzas, numa das quais, por uma rachadura, penetra um mofo cor de pântano. Grades de aço nas janelas. A porta, trancada por fora, só é aberta em momentos predefinidos. Não posso sair. Uma mesa de metal gelado com um livro sobre ela. Cura para o Otimismo, de autoria irrelevante. Estico o braço e apanho-o. Abro aleatoriamente em uma das escassas páginas. A cabeça curva-se para baixo. Os olhos são levados pelas letras.


Da absoluta solidão humana espera que surja o contentamento, a resoluta significação de que assim é que é, e de que é bom que assim seja. Você contando os grãos de areia na praia enquanto caminha para o carro a fim de retornar para casa. Algo cutucando a sua consciência pelo canto. Uma voz que não diz nada. Um barulho de relógio que não marca tempo nenhum. Você sem questionamentos, apenas deixando-se ir pelos pés autômatos. Livre do peso de qualquer Outro, sentindo-se apenas só, caminhando pela praia. O vento como testemunha da sua solidão.


Cinza também, para muito além das barras de aço na janela, o resto visível do céu. A forte chuva que dele agora cai, se faz ouvir aos estrondos, como um apocalipse que se anuncia mas que jamais acontece de fato. Cinzas essas roupas que me obrigaram a usar desde os meus primeiros dias. Não me recordo da última vez em que senti a chuva cair sobre mim, talvez não tenha caído nunca. Pois mais me parece que nasci aqui dentro. Não existe algum fio de sentido que conduziria a história da minha vida. Apenas me vou ao banheiro, ao refeitório e à sala do médico, e para isso não preciso de fio algum. A cabeça se curva ainda mais. Os olhos seguem as palavras de muito perto.


É sempre o momento de maior solidão este de chegar em casa à noite e acender as luzes para iluminar o próprio caminho. Para quem tem casa e luzes. Você aniquilando o escuro e com ele qualquer possibilidade de companhia. Um sentimento de deja-vù ao dirigir-se à cozinha e estranhar o som dos próprios passos no chão. O acender do fogo. O aquecer da água. Nada mais livre do que a solidão de beber café muito tempo depois do escurecer. Nada mais silencioso. Silêncio nenhum mais ensurdecedor. Algo cutucando a sua consciência pelo canto. A certeza de que não há mais ninguém em casa, um fato simples, desprovido de qualquer sentido que se possa dar a ele. Estar solitário em casa não significa nada.


Do corredor posso ouvir um triste lamento. Sei a quem pertence e porque existe. Este lugar está cheio de gente que pensa e que lamenta. Não há espaço para outras coisas além dessas, embora seja verdade que haja tempo. Demais, demasiado tempo. Os medicamentos tomados todos os dias durante muitos anos tornaram-se mais frívolos e necessários do que o próprio ar que se respira. As horas são sempre as mesmas. Os dias sempre iguais. Lá fora não devem ser, no mundo exterior os instantes devem ter algum sentido, algo que os diferenciem uns dos outros; porém, não sei. Talvez sim, talvez não. Essas pílulas me confundem demais para saber.


Luzes projetadas nas paredes. A televisão murmura sons quase inaudíveis enquanto pinta a sala de estar com a paleta de cores do programa da madrugada. Você pegando no sono no sofá com as pernas esticadas sobre a mesa de centro. Se quisesse ficar acordado, pensaria que a cafeína já não é mais suficiente. Mas não quer ficar acordado, tampouco gostaria de dormir. As pálpebras de uma tonelada. Um sonho chegando. Vozes e imagens cutucando a sua consciência pelo canto. Um rosto jovial, uma gargalhada contagiante. Um momento de alegria por lembrar-se dela e de como ela era; mas lembrando cada vez mais longe e cada vez mais baixo.


Amanhã irão levar-me. Para onde eu não sei. Apenas me disseram que terei de mudar de quarto, que vou para outra ala. Isso deve ter a ver com o que li num dos relatórios do médico quando me levaram à sua sala pela última vez. Havia alguma coisa como ‘novo procedimento’ escrito ao lado do meu nome. Na hora não me atinei sobre isso, apenas fiquei tocado pelo fato de poder rever o meu nome escrito em algum lugar. Eles nunca nos dão lápis ou caneta porque devem achar que isso seria perigoso, mas ao olhar por horas e horas essas barras de aço eu só posso pensar que tudo no mundo é perigoso, que não há nada que possa nos proteger, que se nos trancamos em casa é para que nós mesmos nos matemos e não alguém estranho. Sobre esse novo procedimento, qualquer coisa que faça a mínima mudança por aqui parece bem-vinda; não suporto mais viver sempre o mesmo dia. Ainda que não seja verdade, que eu não deseje isso absolutamente, porque eu não sei o que eles farão; e independentemente do que seja, não posso permitir que consertem a minha cabeça.


Amanhã eles virão. E talvez, com um pouco de sorte, esse novo procedimento que inventaram sirva para curar de uma vez por todas esse pessimismo. Eu não sei, mas até lá continuarei mantendo a cabeça curvada e os olhos seguindo o que está escrito nessas páginas.



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