Para a minha amiga Mônica Reguffe
Anda muito complicado viver. Parece que abriram uma torneira de jorrar tragédia e que ela nunca mais fechou. Cada dia é uma nova angústia ao morder o primeiro naco do pão do café da manhã: que será que vem hoje? Que notícia bizarra devo esperar ao ligar a tevê ou acessar a internet? Dá medo de tudo que é tipo: de ser presa, de perder o emprego, de não conseguir suportar, de trabalhar muito mais tempo, até o corpo atingir a exaustão, de adoecer, de ver as pessoas que sofrem sofrendo ainda mais, de não ser feliz. O prognóstico não poderia ser pior, dizem os especialistas.
E aí a gente tem se calado muito mais do que gostaria. A gente tem engolido o choro, tem tido pesadelo e rezado pra não piorar quando o dia começa. Já são comuns os relatos de colegas educadores que não se sentem mais à vontade pra falar as coisas que antes sempre fizeram parte de suas aulas. Comigo é a mesma coisa. Não raro me pego deixando um livro clássico na prateleira, desistindo de um filme mais polêmico ou de um tema contraditório. E viver com medo assim tem feito um mal danado pra muitos de nós.
Mas, apesar de toda porrada que temos levado, tento encontrar lugares de conforto, apoio e alívio nesse inferno dantesco de loucura, insensatez, perplexidade, raiva e resistência que nosso país se tornou. Se eu caio no swing é pra me consolar. E, nos últimos meses, tenho pensado em um clichê que talvez faça sentido em tempos como esses: “de onde menos se espera é que vem”. Eu sempre acreditei no contrário. Sempre achei complicado cultivar expectativas e ouvi dizer com frequência que o melhor é não esperar nada de ninguém e se bastar cada vez mais.
Acontece que a vida tem me feito repensar essa ideia. E admito que o Valter Hugo Mãe tem certa razão ao dizer que o paraíso são os outros. No meio de tanta aridez, tem gente que sabe ser oásis. Gente que não se vende ao sistema, que negocia o valor de seus produtos ou serviços em época de crise. Que sabe o quanto é importante popularizar o acesso ao seu trabalho, que entende que nem tudo passa pelo dinheiro e que se pode, sim, ser bem sucedido sem explorar as pessoas que mais precisam.
Gente que ajuda os colegas no trabalho que chegaram há pouco na empresa, que compartilha ideias sem medo de competição. Que torce genuinamente pela felicidade dos outros, que escuta áudios intermináveis, que perdoa de verdade, que ajuda na mudança do vizinho sem ele pedir, que se oferece pra ficar com o filho da amiga pra ela ter umas horas de lazer. Gente que faz visitas de surpresa, que faz questão de telefonar, que leva um pedaço de bolo maior pro lanche da firma, que escuta as crianças com atenção e sem a impaciência típica de um adulto.
Gente que se entrega verdadeiramente a um amor. Que cruza quilômetros, que abre a vida, que abre a casa, que diz que sim quando tudo em volta diz que não. Que segue amando após várias décadas, que se encanta diariamente, incentiva, valoriza, respeita e se reinventa pra seguir amando. Gente que não é líquida, é sólida. Que compartilha as tarefas da casa, a educação dos filhos, as responsabilidades. Que enxerga o outro, vê as suas dores, conquistas, olha de verdade e sem pressa. Que não faz exigências bestas, que escolhe ser companheiro, que não se quer roteirista da história de ninguém.
No meio de tanto veneno na comida, no ar e na alma, tem gente que se importa com o planeta, com a vida dos animais, com hábitos menos invasivos e que se preocupa em consumir menos e melhor. Tem gente que defende os povos tradicionais, que faz da própria vida luta diária por uma sociedade mais justa. Muita gente que busca um contato mais íntimo com a natureza, que tenta viver em lugares mais calmos e plantar uma horta. Tem gente que oferece palestra de graça em escola, faz show solidário, campanha pra castrar cachorro de rua.
Tem até quem oferece a própria casa, o sofá, o colo, o ombro, o dinheiro, o peito aberto. Que aparece do nada, de lugares de onde a gente menos espera. Gente que nos surpreende e nos faz voltar a acreditar que dá pra ser feliz. Que merecemos isso. Que somos dignos de um mundo bem mais legal do que esse que aparece no noticiário. Gente que é mais paraíso que inferno, dona de um riso aberto e de uma liberdade impressionante. Gente boa, de coração bom. De onde menos se espera é que vem. De onde se espera também.
Juliana Cruz é professora de História, feminista, cervejeira e cassineira apaixonada.
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