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Dois acenos

Hoje tirei selfies mais vezes do que escovei os dentes. Uma necessidade imensa de pretexto para interação e de biscoitos para o café da tarde. Uma tentativa de negar que lá fora, onde a morte dantes acenava, agora é a vida quem estica os dedos timidamente em meio ao todo de confusão e caos que nos tornamos. Uma tentativa de tornar o conflito entre o turbilhão de dentro e a devastação de fora uma espécie de câmara serena, blindagem inútil.


Faz um ano, já. Faz um ano e parece que andamos em círculos sem sair do lugar. Nós, que tanto falamos de aprender com a adversidade, agora nos deparamos com a multiplicação do absurdo sem fronteiras. Tenho mais medo de acessar as redes sociais e ler comentários do que tinha de abrir a porta aos domingos, acossado por religiosas tentativas alheias de conversão.


Faz um ano já que tá tudo uma bosta e eu ainda sigo ouvindo gente indignada porque as escolas já deveriam estar funcionando, porque estão matando as pessoas por dinheiro, porque tudo virou política. E eu entendo que parte do negacionismo talvez seja tentativa de não lidar com a realidade, mas não há paciência que suporte a dupla carga de virar para um lado e ver milhões de mortos e virar para o outro e ter de ouvir e ler essa ladainha que parece tortura de filme de terror.


Estamos cansados, estamos todos cansados. Eu mesmo já passeei pela casa milhares de vezes e já fiz os meus jogos na tentativa de evitar encarar os meus olhos cansados frente ao espelho. Já passei pela adaptação à rotina do teto, já fui o sujeito que flexibilizou de leve os cuidados e que partiu em busca de natureza desocupada, já pintei paredes, redescobri habilidades, meti os pés pelas mãos não poucas vezes, vivi de lives e videochamadas, recuperei e abandonei o gosto pela leitura, pelos filmes, pela cozinha e pelas coisas todas, e recupero aos poucos, outra vez, o que desaprendi na ânsia de me entediar com o que deveria me servir de fuga ao tédio.


Eu já estou cansado até de ir ao supermercado. Antes ia uma vez por semana, depois de um tempo inventava pretextos para comprar o que faltou, agora imploro às prateleiras que guardem ainda um resquício de comida que me impeça de ter de ir até lá para reabastecê-las. Minha geladeira se esvazia a passos lentos, já em luto. Eu também fui me esvaziando pouco a pouco, e não dei falta das partes de mim que já se tinham ido quando conferi se ainda havia alguma coisa consumível cá dentro. Eu estou cansado.


Como chocolates como se fossem grãos de arroz em prato recém-servido. Já não sinto mais o êxtase do doce e o aproximar-se da Páscoa me alimenta mais a angústia que o desejo. Como verduras – verduras não, mentira, como brócolis – na tentativa de, criando uma versão de mim que não se renda, me obrigar a fazer algo por esse fio de vida.


Sinto falta dos meus e sinto falta dos abraços, todos eles. Se dantes dava uma volta na quadra com a cachorrinha, agora passeamos em L, marcho mais por obrigação que por entretenimento. Vejo a lua no breu com o espanto de quem encontrou algo de que havia esquecido num canto da geladeira, mas que lamentavelmente já não pode mais consumir.


Olho-me com a tristeza de saber-me humano, e com certa frequência anseio pedir a mim mesmo que me proteja de mim, esse outro irreconhecível que me torno enquanto tento ignorar a catástrofe em que estamos mergulhados na tentativa de respirar um pouco de ar. E me pego chorando pensando em números que dantes eram gentes e habitavam geografias e vidas que em sua maioria não me são nem imaginadas. Choro porque percebo que me perco também por entre os números todos e tantos e me sinto fútil no abrir e fechar diário das persianas.


Entro nas redes com os olhos semicerrados, e um amigo me pergunta sobre a morte. Com frequência pessoas de que gosto, diante da dor, pedem a minha opinião por, segundo elas, eu ser mais espiritualizado. E eu me sinto uma farsa diante da dor que não posso conter. E em parte me alegra que algumas dessas pessoas ainda acreditem em Deus. Eu já não consigo crer nele. Nunca acreditei muito no deus cristão e, quanto mais avanço nessa caminhada, menos me agarro ao invisível. Acredito que estejamos em conflito, faz um tempo.


Mergulho triste nessa insatisfação com o mundo e tento fechar os olhos para dormir, mas nem nos sonhos mais há paz, sou só violências. Escrevo para tentar expurgar um pouco disso tudo e quem sabe agora, dada a verborragia, o meu corpo cansado se desaflija por algumas horas. Por onde anda a Esperança, essa de que tanto me falaram as literaturas?


Giliard Barbosa é um tanto de caos que, ao nascer, recebeu da mãe o nome de um cantor, com um L a menos, pra não complicar. Ordenado pela palavra, o rapaz encontrou na poesia uma forma de cantar a ausência. Professor do Instituto Federal, Giliard tem mestrado em História da Literatura (FURG) e doutorado em Letras (UFRGS). Interessa-se pela palavra poética, e seu foco de pesquisa tem sido a escrita de mulheres e(m) trânsitos.

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