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Dos tesouros no quintal de casa

Eu nunca fui muito de carnaval. Nem muito de fantasias dessas de roupa e tal. Quando era bem pequeno ia aos bailes e catava confete no chão depois que o meu acabava. Catava e guardava no saquinho. Voltava pra casa com mais confete e serpentina do que quando chegava nos bailinhos. Pelo que consigo lembrar, nem fui em muitos. Lembro, inclusive, de normalmente não ir fantasiado. Uma bermudinha, camiseta e sandália e tava feito. Mas lembro de uma fantasia que nunca usei e sempre quis usar: a de pirata. Até hoje acho tapa olho um negócio fantástico. Existe pirata de todo tipo, mas umas facetas são mais populares que outras, suponho. Alguns deles são exploradores, alguns sanguinários, outros anti-heróis ou, ainda, vilões de primeira. O meu era do tipo caçador de tesouros, solitário e desconfiado. Teve uma época em que eu andava pelo quintal da casa onde cresci enterrando pequenos tesouros e fazendo mapas em papéis com as bordas queimadas pra depois tentar encontrar cada um dos objetos queridos.


A ideia de esconder do mundo algo de muito valor sempre pareceu apropriada. Talvez não seja somente uma representação do desejo de não ser subtraído, mas, em alguma instância, a uma espécie de necessidade de manter intacto o afeto contido em cada um desses tesouros. De uns tempos pra cá percebi que isso, por mais indesejável ou esquisito que seja, faz parte da formação da identidade de muita gente. Sabe aquela banda que você descobre e ela é sua e de mais ninguém? É quase isso. E a gente pode ser bem mesquinho em alguns casos. E pode perder todo tesão no artista-que-é-só-meu-e-de-mais-ninguém quando percebe que não é bem assim. Por outro lado, volta e meia a gente se emociona quando descobre que alguém legal curte a mesma obscuridade que a gente. Hoje eu sou o tipo de cara que fica feliz quando sabe que alguém tem essa afinidade. E mais ainda quando sei que é um tesouro pro outro também.


No finzinho do ano eu recebi uma mensagem de um camarada do outro lado da ponte, lá de Pelotas: “tu já ouviu o disco da Paola? Ela é da tua cidade, não é?”. Sim, a Polly, um desses tesouros de quintal, sem dúvida. Que orgulho. O disco da Paola Kirst é uma delícia. São doze músicas com mais ou menos quarenta e cinco minutos de inspiração pura. Que feio dizer isso, mas tem horas que a gente esquece que é daqui, que foi feito aqui na volta, ali em Pelotas, com o pessoal da Escápula Records. Não é num sentido ruim, entende? É que é tão bonito que podia ter vindo de qualquer lugar desses que a gente diz que é fundamental pra música no mundo. Podia ser, tranquilo, um desses artistas que recebe mundos e fundos pra fazer o trabalho, mas, pelo que sei, é independente e tá brigando pelo lugar ao sol.


Lançado no fim de 2018, “Costuras que me bordam marcas na pele” acerta bonito nas decisões estéticas. É um disco que investe demais nos elementos percussivos, abrindo espaço pra que a voz – o corpo, espaço da Paola – também encontre seu lugar num quinhão comumente monopolizado por batucadas de todos os tipos e por uma tribal masculinidade na música. E ainda tem a mão precisa e formidavelmente entortada do Dionísio. A introdução de “Crendice” é um orgasmo pra quem curte baixo. Não é fácil continuar soando tão pungente quando se está entre músicos como o pessoal do Kiai (ouça “Além, de 2018, disco completo dos caras), mas a Polly é uma gigante. Músicas como “Charlie 04”, assinada por Juliano Guerra, são arranjadas e interpretadas como se a coisa estivesse acontecendo. Se você é do time dos pouco empáticos, daqueles que querem desesperadamente empunhar uma arma pra dar um jeito nas coisas, que acha que azul-e-rosa blá-blá-blá-lugar-de-mulher-é-em-tal-lugar e assim por diante, levar um soco no estômago na voz de Paola Kirst pode te fazer um bem danado. O performático e o teatral escorrem pelas faixas. Além das vinhetas-poemas da artista, o fecha-disco “Olívia” e a brilhante “Cais” são alguns dos momentos mais bonitos e introspectivamente engajados com um auto-reconhecimento artístico daqueles que só a maturidade oferece. Um tesouro, sem dúvida. Um tesouro aqui do quintal, de pé no chão, cheio de uma alegre melancolia, ancorado em uma narrativa que encontra o íntimo de quem ouve e faz querer que o outro também seja encontrado. Não pode ser enterrado, não pode ficar escondido. Se eu encontrasse todo o confete que guardei, juro que despejava nesse disco. Taí o mapa, ouça:




Régis Garcia é músico, psicólogo, professor, cachorreiro, curte barulho, ruídos, vinil, cinema, literatura, experimentalismos e esquisitices em geral.

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