Nosso objeto de estudo, chamado, de agora em diante, de “protagonista”, classificação curiosa, é verdade, mas que parece-nos oportuna, é um espécime humano, sexo masculino, meia-idade, pele parda, nativo e residente neste país. Ocupava-se de um cargo na empresa “Escritório Burocrático para Assuntos Burocráticos”, oferecendo serviços burocráticos para demandas burocráticas do Governo e de empresas. Sua atuação centrava-se no preenchimento burocrático de folhas burocráticas e era prezado, ao que consta o parecer de seus superiores, como um excelente funcionário. Morava em um apartamento burocraticamente decorado, o que queria dizer que em seu apartamento pouco houvesse que não estivesse ali por mera utilidade de preencher o espaço em branco. Aliás, essa seria uma boa definição para nosso protagonista: uma criatura útil ocupando espaço em branco. Não deve surpreender, portanto, que, logo naquele momento, “assistia” à televisão e “escutava” uma jornalista qualquer falar sobre um tal vírus chinês com indiferença. Ninguém espera, é claro, que um homem permaneça assim tão inexpressivo após ser deixado abruptamente por sua mulher (e sua filha), mas, como observado, era afeito a praticidades. Para fins narrativos, no entanto, consideramos digno de nota ressaltar que ela, sua (ex-)esposa, horas atrás, mencionou algo sobre levar a filha para a casa da mãe por estar inteiramente enojada daquela vida de merda sem tesão (sic). Ele não entendeu ao certo as palavras.
Ela anunciou a sentença pela manhã e ele foi cumprir burocraticamente suas funções burocráticas em seu primeiro turno de trabalho, não comeu mais do que uma banana no intervalo do almoço (fazia exatamente isso nos dias em que sua mulher não o deixava) e, depois de cumprir burocraticamente mais algumas funções burocráticas à tarde, retornou para o apartamento. E o apartamento estava vazio. Literalmente vazio, visto que o apartamento sempre soava mesmo meio vazio (nunca se pode ocupar todo o espaço em branco). Como de praxe, afrouxou a gravata (na mesma intensidade em que todos os dias afrouxava a gravata, diga-se de passagem) e, bem, sentou-se em frente à televisão. Comeu coisa qualquer, tomou banho e voltou a “assistir” à televisão por mais algumas horas antes de dormir. Na manhã seguinte, ele acordou e fez tudo de novo. Não é possível, nós pensamos! Um casamento de vinte anos, afinal. Mesmo que um casamento péssimo, vinte anos são vinte anos! É compreensível, então, que dificuldade de aceitar tal monotonia, faça-nos acelerar o espaço-tempo dessa narrativa e, acompanhando-o pelos próximos dias em apenas mais algumas linhas, descobrimos, então, para nossa revolta, que por dias e mais dias, nosso protagonista viveu de forma desesperadamente normal, como programada sua rotina.
Quando levantou aquela manhã, no entanto – aquela manhã já a mais de mês do ocorrido -, por mais que tivesse se prontificado a realizar todos os seus afazeres normalmente, algo de estranho aconteceu. Sapatos diante das portas dos apartamentos vizinhos! Máscaras! Ruas (quase) vazias! Ônibus com horários trocados e não devidamente advertidos! Tudo um absurdo, é de se esperar, para um protagonista como o nosso. (Não para nós, é claro, que felizmente estamos do outro lado dessa história). Marchou até seu escritório apenas para descobri-lo trancado: “Atividades suspensas por tempo indeterminado”. “Atividades” - Que atividades? Quais das inúmeras (mesmo que não bem diferenciadas) atividades daquele escritório? - “suspensas” - Por quem? Por qual motivo? - “por tempo indeterminado” - Mas que circunstância assim alarmante poderia desafiar a roda burocrática do mundo colocando-a em suspenso? Afinal, seu trabalho era muito importante, sabia que sim.
Ao retornar ao seu apartamento, ligou para seu chefe. Depois de muito insistir, o responsável pela firma atendeu soando confuso como os leitores neste momento. Os motivos para a suspensão das atividades do trabalho eram assim tão óbvios ao homem que acordou de susto recebendo aquela ligação pela manhã de segunda que demorou a encontrar a palavra já familiar à boca de todos: Uma pandemia, pelo amor de Deus! Uma pandemia? Sim. E era preciso ficar em casa, isolado, evitar ao máximo qualquer contato com outros. Pois trabalharia em casa! Uma surpresa para o gerente que aproveitava o tempo de sobra para fazer nada. De última hora, como quem encontra a primeira moeda perdida no bolso para dar a um pedinte qualquer, disse que adiantasse então o trabalho acumulado e desligou o telefonema com pressa. Trabalho acumulado? Nosso protagonista não acumulava trabalho. Fez o esforço de remexer em sua pasta: trabalho marcado para aquele dia, trabalho talvez necessário para o restante da semana, trabalho a ser refeito. Não ousou trocar de roupa, nem minimamente desfivelar o cinto. Trabalharia como se estivesse em seu escritório. Inclusive, buscou preparar um café tal qual o que tomava todas as manhãs na empresa – pouco pó e muita água (para não prejudicar as economias do escritório). Em dois turnos de trabalho, ainda naquele dia, mantendo o ritual da banana mal digerida na hora do almoço, terminou tudo o que havia a ser feito (com direito à revisão adequada).
Pelos próximos dias tentou se iludir. Refez tudo que tinha feito mais algumas boas vezes. Ligou (sem respostas) para o seu chefe mais algumas boas vezes. Perambulou pelos cômodos do apartamento buscando qualquer sinal de ocupação mais algumas boas vezes. Por isso, não é de estranhar ao leitor que, quando realizamos outro salto espaço-temporal em poucas linhas, encontremos nosso protagonista encarando sua televisão como em um transe. Antes de chegar aí, saboreou todo o cardápio de inutilidades que um pacote de canais (assinado burocraticamente no passado e até agora nunca utilizado) pode lhe oferecer. Como um homem sério, que um dia estava decidido a ser, começou sua jornada televisiva pelos canais de notícia – aqueles que dizem ser os mais sérios dos canais. Essa fase durou pouco, é preciso constatar. Depois ainda passou pelos canais de culinária e pelas receitas que, de certo, nunca faria, pelos jogos de futebol, em sua maioria terminados em empate, pelas novelas baratas, recheadas de tapas e beijos, pelos programas de auditório e suas fórmulas repetitivas, e, sem dúvida, pela pornografia e por tudo de bizarro que cabe dentro dela - banheiras cheias de bolhas de sabão, pelas unhas coloridas, enormes e pontiagudas, pelos entregadores de pizza e clientes aparentemente insaciáveis, pelos balões infláveis no lugar de peitos, pelo entra-e-sai interminável, pelos gemidos forçados, pelo afeto demasiado entre quase familiares… Depois desse percurso vertiginoso é de se supor, então, que nosso protagonista chegaria onde chegou. Não sabemos dizer ao certo, de fato, quando, mas, em algum momento, previsivelmente entediado para além do suportável, abstraiu-se de tudo e encontrou na tela de sua televisão o verdadeiro carnaval.
Acabou por realizar algo como um salto ornamental – perdeu o sentido coerente da superfície das coisas e mergulhou naquilo que sustentava todo o espetáculo. Nosso protagonista começou a perceber, quase que com o rosto colado na televisão, no detalhe dos pixels infinitos, com ajuda do ouvido atento, cores, formas, movimentos e a sonoridade mínima que antecede a música. Delirava o dia inteiro submerso naquele universo microscópico-maravilhoso-perdido, estava ali, afinal, todo aquele tempo diante dele, tudo aquilo, por anos e mais anos vivendo em seu apartamento. A revelação veio carregada de obsessão. Naquela fatídica madrugada em que o encontramos, já havia dias em que perpetuava o ritual epifânico de entregar-se à contemplação. Portanto, quando a televisão apagou, queimada de repente, deixando nosso protagonista sozinho no breu e no silêncio da noite, sentiu-se em falta na falta (se nos é permitido dizer por ele) em meio ao seu apartamentinho. Começou a se mexer, a caminhar em círculos, a passar as mãos no topo da cabeça, a puxar os fios de cabelo, a se arranhar, a soltar ruídos, a arriscar saltos, a revirar os cômodos… como que buscando, como que precisando encontrar algo, como que… em uma reação abrupta, puxou a televisão de seu suporte, fazendo-a cair no chão da sala, a tela espatifou-se em mil e um pedaços. O nosso protagonista deitou no sofá. E dormiu.
No dia seguinte, como que sufocado ao acordar, ficou nu. Pela primeira vez em anos, nosso protagonista não trocou o pijama pela roupa que usava todos os dias para trabalhar no escritório (e que continuava a usar religiosamente isolado em casa). Atirou o pijama em um canto da sala quase como que rasgando a regata, o calção, a roupa de baixo. Sambou desviando dos cacos de vidro da saudosa tela que jaziam espalhados pelo chão. Escancarou a porta do apartamento. Começou por arrancar os quadros das paredes – quadros que antes apenas ocupavam burocraticamente o espaço em branco com suas representações tão exatas de vasos de flores. Jogava-os, pela porta, no corredor do prédio. Não era o suficiente. Arrastou móveis leves, como cabeceiras e mesas, igualmente para fora. Aqueles que eram muito pesados para serem tirados do lugar, ou grandes demais para passarem pela entrada, ele desmontou sem muito cuidado, por vezes quebrando algum encaixe. Foi empilhando os restos mortais de seu apartamento em frente aos vizinhos. Jogou para fora também os poucos livros (manuais da empresa etc), as peças de roupa idênticas, os eletrônicos, as louças, os papéis de trabalho, o tapete da sala. Deixou consigo apenas o que lhe provocasse inspiração (ah, claro, e uma pequena escada que antes usava para trocar lâmpadas). Bateu a porta do apartamento.
Pegou primeiro a caneta vagabunda que usava para preencher formulários (a mais econômica – porque nosso protagonista era, como se sabe, afeito a praticidades) e o canetão que usava para anotar demandas (e mais demandas) em seu quadro branco e começou a rabiscar as paredes. De início, tentava reproduzir o carnaval de forma que observava há dias (semanas, meses) no universo microscópico (e agora perdido) de sua televisão. Riscava livremente sem se preocupar em parar para refazer traços – sua mão seguia um caminho sem volta, como um dança performada sem ensaios. Quando sentia que lhe faltava espaço na verticalidade das paredes, invadia, com seus tracejados, as lajotas do chão e mesmo o teto com ajuda do suporte da escada para trocar lâmpadas, sem se preocupar em idealizar planos separados – era tudo um mesmo quadro em branco aberto para suas criações. Por vezes, as linhas tomavam formas geométricas bem definidas (apesar de não precisamente calculadas), às vezes, ele inventava suas próprias formas geométricas. Foi tornando-se cada vez mais ambicioso e criativo, rompendo com o modelo primeiro de sua inspiração e criando algo de revolucionário demais para a estreiteza dos pixels.
Alguém tocou a campainha. Quando preencheu todos os cômodos, em todas as direções e alturas, com seus desenhos, explorou melhor as cores. Alguém segurava o interruptor da campainha de forma ininterrupta. Começou com a caneta vermelha que usava para sublinhar e circular erros inadmissíveis nas papeladas mal executadas de seus estagiários e o canetão vermelho que usava para destacar a urgência das demandas em seu quadro branco, quando sentiu que a monocromia lhe era insuportável, usou dos marca textos que também lhe eram úteis no dia a dia de trabalho. Alguém desistiu de tocar a campainha e batia (esmurrava) diretamente à porta. Apertava as pontas sem piedade contra as paredes, o piso, o teto, arrancando o maior potencial expressivo que conseguia daquelas ferramentas insossas de sua rotina burocrática. Além de preencher espaços, descobriu o potencial de criar traços coloridos transversais por entre as linhas das canetas escuras. Quando as pontas, devidamente destruídas, já não lhe serviam mais, amassava as canetas e, estouradas, atirava-as contra os cômodos, para que lhe dessem um efeito diferente de tinta esparramada caoticamente. Alguém gritava lá fora dizendo-lhe que aquela bagunça no corredor era inadmissível e que ele deveria abrir e recolher as tralhas naquele exato momento. Finalmente, atirava os produtos de limpeza e as garrafas de bebida contra o espaço e esfregava os dejetos e os restos de comida que encontrou pelas lixeiras do apartamento, gerando mais matizes e criando texturas. Alguém unia-se com os outros vizinhos lá fora para gritarem, em coro, revoltados, sobre a bagunça inaceitável no corredor.
Ficou mais um tempo absorto em suas criações. Nem todo material secava e aderia fácil às “telas” e nosso protagonista ainda teve a chance de com os dedos (de fato, com o corpo inteiro) redirecionar suas primeiras manifestações. O síndico, do lado de fora do apartamento, ligava para o telefone da ex-mulher de nosso protagonista (que ele ainda imaginava morar ali) e reclamava aos berros sobre o absurdo que estava acontecendo. A mulher, obviamente surpreendida, levou um par de horas para que pudesse livrar-se de suas ocupações, atravessar o trânsito e alcançar o dito apartamento do qual gostaria de nunca mais ter que retornar. Nosso protagonista dedicava-se a descobrir seus próprios feitos, conforme andava por entre os repartimentos da casa explorando que segredos guardava sua potência criativa. Ela ainda tinha uma cópia da chave consigo. Vez ou outra ainda acrescentava (nunca apagava) traços, formas, manchas, cores. Quando ela finalmente destrancou a porta do apartamento, seguida por uma turba de vizinhos indignada e barulhenta (sem máscara e sem álcool gel), deparou-se com seu ex-marido, pelado, parado ao centro da sala de estar de um apartamento completamente transformado, tornado, da noite para o dia, uma caverna perdida (reencontrada) pré- (trans) histórica tomada por arte, enquanto ele encarava extasiado o seu redor.
- Shhhhh! - nosso protagonista disse calmamente à massa raivosa que se calou de prontidão com o pedido de silêncio.
E ficaram todos ali, mudos, contemplando juntos.
Lucas Zafalon Garcia (1998) nasceu em Rio Grande (RS) e sofre, desde a epigênese da infância, de verborragias – pensa em renovar o homem usando borboletas, pois sabe que um galo sozinho não tece uma manhã. Formou-se, portanto, como consequência direta dessa condição, em Letras Português-Inglês (FURG) e atualmente é mestrando em Letras (UFRGS), na área de Estudos de Literatura, em que almeja estudar a literatura em tensão com a teoria social, a filosofia e a psicanálise. Publicou crônicas esparsas no falecido Jornal Agora e é autor do livro de contos Esta nossa tautologia, a ser publicado pela Concha Editora em 2021. Além disso, vez ou outra, compartilha alguns rascunhos poéticos despretensiosos em seu perfil do Instagram (@luczafalon).
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