Olá, escritores e escritoras!
Na coluna deste mês, quero compartilhar com vocês um pequeno texto no qual quis exercitar diferentes vozes narrativas para o mesmo tema. Este texto foi escrito em papel faz alguns anos e recentemente passei para o Word.
Carece de uma revisão aprofundada, mas o importante é perceber a minha tentativa de conduzir uma história por diversas vozes, sem perder o fio narrativo de vista.
É um texto em aberto, pronto para receber sugestões. No próximo mês, falarei mais sobre a prática de escrita de narradores e como podemos melhorar as nossas histórias escolhendo o melhor narrador para contá-las.
Abraços e boa leitura!
COROLA
NARRADOR-CÂMERA
A iluminação estabilizou no octógono. O som da torcida se intensificou. O árbitro Jackson, no centro do tablado, perguntou ao Gregório se estava pronto, depois ao Lucas. Após a afirmativa de ambos, deu início ao combate.
Gregório: sunga box amarela. Idade: 34 anos. 1,90 de altura. 12 vitórias – 11 por finalização. Apelido: Orixá da morte.
Lucas: calção marrom. Idade: 21 anos. 1,83 de altura. 3 vitórias, 1 empate e 1 derrota. Tem como ponto forte o Muay Thay. Apelido: Serpente.
Gregório domina o centro do octógono. Base de canhoto. Lucas desfere dois chutes baixos na perna direita. O centro do octógono continua dominado pelo Orixá da morte. Ele tenta um jab na altura do abdômen, mas é contra-atacado por Lucas: mais dois chutes baixos na perna direita. Gregório troca de base. A parte interna da coxa inchou. A torcida canta como se fosse um jogo de futebol. Lucas circula e Gregório acompanha os movimentos no centro do campo de batalha. Lucas ginga e o Orixá da morte abaixa LEVEMENTE a mão esquerda: o jovem lutador investe num jab – Gregório esquiva agachando os joelhos, abraça a cintura do oponente e o derruba. O Serpente contorce as expressões faciais e tenta se esgueirar e sair e não consegue e tenta resvalar e continua em infrutíferas tentativas de sair debaixo do especialista em luta no chão. Gregório ganha a meia-guarda e Lucas tenta ficar de lado, deitado na lona. O Orixá inicia a transição para as costas do Lucas. O Serpente impulsiona o tronco, baseado no apoio das pernas e acerta uma cotovelada em Gregório, que afrouxa as pernas e os braços. Lucas entra na guarda do Orixá da morte e faz postura. Mais uma cotovelada de Lucas, Gregório tenta se defender, mas sofre uma chuva de golpes cortantes desferidos por Lucas. Gregório usa os braços como escudo, e Lucas os magoa com cotoveladas velozes e contundentes. A plateia não para de gritar, gemer, urrar, bater palmas. O rosto de Gregório está vermelho-sangue. Os braços roxo-violeta. Lucas ofega e cotovela.
O árbitro Jackson se interpôs e sinalizou o final da luta. Lucas saiu de cima de Gregório e não teve forças para erguer os braços e comemorar a vitória. O Orixá da morte tossia sangue.
NARRADOR UM POUCO MAIS IMERSIVO
Pela segunda vez naquela noite, Gregório vomitava. Antes fora na privada de sua casa, agora no banheiro do vestiário. Não era por causa do público histriônico – ansioso pela presença do Orixá da morte, nem por causa da presença de um olheiro do Jungle Fight, muito menos pelo clássico ligeiro mal-estar pré-luta.
A saudade dos beijos voluptuosos, os abraços quentes, o olhar apaixonado, os gemidos entregozo, que rebatiam no travesseiro e reverberavam pelo quarto. Este é o motivo. Pior ainda: o medo de não receber mais tudo isso. O Didico foi bem claro na semana passada:
- Negão, ou tu largas de mão da porra desta história ou tu não vais sair do amador.
Gregório queria se profissionalizar, lutar contra os grandes, aparecer na tevê, nas revistas, e, quem sabe, ir lutar nos Estados Unidos. E por que não? Faixa preta em Jiu-jitsu, faixa roxa em caratê Shotokan, estava crescendo nas habilidades de boxe. Era um atleta versátil. Quase 30 anos e ainda lutava no amador. Durante um tempo, no início de tudo, combatia nas lutas clandestinas do Sebastian, onde era mais vale-tudo que qualquer outra coisa – o árbitro era a mesma coisa que nada. O Orixá da morte se formou ali e conseguiu sair vivo. Agora há um olheiro do Jungle Fight na primeira fila – estava ali apenas para observar presencialmente o Orixá da morte.
Ou ele se entregava de vez para a vida no MMA, ou se entregava à armadilha do coração.
Coração.
Bate muito forte.
Abraçado na privada, Gregório chora, enquanto a plateia vaia – como se fosse para ele, mas imagina uma luta amarrada no octagon. Cards preliminares são assim. Os mais guerreiros, estratégicos e ouvintes do córner conseguiam um lugar no card principal.
E agora, Gregório?
Vai ouvir o córner desta vez?
Gregório é guerreiro. Toma a sua decisão.
A plateia ensandecida aplaude.
NARRADOR-TESTEMUNHA
Eu não acreditei quando o negão tomou aquela cotovelada.
Já tinha sacado que ele estava diferente lá no vestiário: olho inchado de não dormir, cara fechada, aqueceu demais. O negão aqueceu demais! Ali eu vi que tinha caroço no angu. Ok, pode chorar escondido, pode ficar com cara emburrada – é normal, porra! Eu mesmo já chorei quando lutava, lembro de uma que caí no berreiro na final de vale-tudo em 89, contra o Paulo Hidrante. O gringo era uma munaia! Tomei tanto soco na fuça que nem sei de onde tirei aquela chave de braço, mas tirei, porra! Fui campeão! E chorei muito antes, lá no vestiário, até vomitei, de tão nervoso. Tinha gente que viu e me chamou de bicha. Foda-se. É coisa de quem luta. E ganhei a porra da luta! Mas o Gregório aqueceu demais, sem necessidade. O normal dele era um aquecimento leve, depois ficava meditando, tranquilo, ouvindo o pagodinho dele, lendo gibi, essas coisas. Ele sabia que ia subir no palco dele e dar o show. Arrebentar os adversários a pau. O cara veio da periferia, viu muita merda lá na Restinga. E conseguiu sobreviver. Depois foi pro vale-tudo clandestino. E sobreviveu, porra! O negão é forte demais.
E perde pra um guri na cotovelada, na transição errada. É mole? De que adianta eu ficar no canto, dando as instruções se ele não ouve? De que adianta dar as dicas, treinar situações e o cara não escuta?
Uma preparação intensa de 3 meses jogada fora por causa de uma cotovelada. Um guri, caralho!
Tu sabes o que eu acho?
Putaria!
Putaria com aquele telemarketing da porra!
NARRADOR PROTAGONISTA
A mesma flor que eu regava, quando o conheci, é a mesma que eu plantei na nossa casa.
Nova cidade, novos vizinhos, novos ares. Ele largou o trabalho de atendente. Eu montei uma academia. Um ajudava o outro.
Eu era o Orixá da morte.
Entreguei minha cabeça para os orixás do amor.
Agora sinto dor.
Ele virou ator.
Assinou um contrato: NÃO PODE REVELAR A SUA HOMOSSEXUALIDADE.
Foi morar em São Paulo. Nem bilhete deixou. Não quero a morte, sentia amor, agora sou a dor.
A mesma flor está lá, no canteiro.
O meu desabrochar fugiu.
Cristiano Vaniel é professor de Literatura, escritor, vive em Twin Peaks, fuma Red Apple e é embalado por synthwave.
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