Pela primeira vez, desde que comecei minha colaboração para esse site, fiquei sem ideias sobre o que escrever. Reafirmar o absurdo lá fora parecia algo improdutivo – para mim e para você, leitor. No meio do caos, ninguém solta a mão de ninguém, deve haver algo a ser feito para espalhar boas ideias e reflexões para resistir. O problema maior reside no fato de que é impossível desligar o absurdo.
Diante de um desses casos, resolvi falar sobre o livro da Daniela Arbex, Holocausto brasileiro, no qual a autora relata as condições precárias e o tratamento brutal de doentes mentais no hospital Colônia, em Barbacena, Minas Gerais. Quero abordar esse livro, mostrar alguns trechos, pois esse desgoverno quer a volta dos manicômios no Brasil, com direito a todo o retrocesso possível, incluindo o uso do eletrochoque. É, a gente fica de boca aberta por uns bons minutos, pois o golpe é demais para aguentar.
O documento, liberado no dia 4 de fevereiro, dá passe livre para a compra de equipamentos usados na eletroconvulsoterapia para o SUS e, ainda, permite a internação de crianças e adolescentes em hospitais psiquiátricos, além de medidas de abstinência para dependentes químicos. Embora o ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta, tenha alegado desconhecer esse documento, ele existe e pode ser encontrado nessa matéria da revista Exame, com mais detalhes sobre a proposta.
Nessa pegada “retorno à Idade Média”, é necessário resgatar um pouco da memória dos horrores ocorridos no Brasil ao longo do século XX. O livro-reportagem de Arbex é resultado de uma intensa pesquisa das histórias por trás dos muros do hospício, onde um genocídio sistemático se instaurou. O termo holocausto utilizado como título não é um exagero: 60 mil pessoas perderam a vida no Colônia. 1.853 corpos foram vendidos para dezessete faculdades de medicina entre o final dos anos 60 até os 80.
É muito difícil resenhar um livro desses porque não há nada além da desgraça. O cenário desolador começa pelo encarceramento de pessoas que não possuem nenhum tipo de doença mental (lembrando: ainda que sofressem de algo do tipo, aquele jamais seria o tratamento adequado). Muitos pacientes eram prostitutas, homossexuais, epiléticos ou, simplesmente, rebeldes. A linha divisória entre normal e louco era nebulosa e um mínimo desvio do padrão poderia jogar a pessoa dentro de um trem direto ao inferno.
O escritor Guimarães Rosa cunhou o termo “trem de doido” não por acaso. Rosa foi parte do 9º Batalhão de Infantaria de Barbacena em 1933, portanto conhecia bem a realidade daquele local horrendo. O emblemático conto “Sorôco, sua mãe, sua filha”, do livro Primeiras estórias, aborda a loucura e menciona os trens superlotados de gentes enviadas “à capital brasileira da loucura”.
A estratégia para levar essas pessoas até o Colônia era muito similar àquela usada pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial. Levados ao desconhecido, sem nenhum motivo convincente, mulheres, homens e crianças chegavam ao Colônia para vivenciar o pior que o ser humano pode sofrer.
No prefácio do livro, escrito pela excelente Eliane Brum, já temos uma pontada dos horrores a serem desvendados nas páginas seguintes:
Homens, mulheres e crianças, às vezes, comiam ratos, bebiam esgoto ou urina, dormiam sobre o capim, eram espancados e violados. Nas noites geladas da serra da Mantiqueira, eram atirados ao relento, nus ou cobertos apenas por trapos (ARBEX, 2013, s/p).
Eliane Brum afirma: “O repórter luta contra o esquecimento”. Brasil, 2019, mais do que nunca, devemos lutar contra o esquecimento e contra a burrice institucionalizada. É por isso que resolvi juntar forças para revisitar esse livro tão cruel. Daniela Arbex passa a história a limpo, conversando com sobreviventes, ex-funcionários, pessoas que tiveram suas vidas destruídas e só depois de muito tempo conseguiram recuperar o mínimo de dignidade.
O Colônia recebeu tudo aquilo que a sociedade não gosta e taxa como louco. Incontáveis as filhas de fazendeiros enviadas nesse trem apenas por terem perdido a virgindade ou simplesmente por exigir igualdade entre elas e os irmãos homens, por exemplo. Cito um trecho:
Aos quinze anos, Conceição foi mandada para o hospital, porque decidiu reivindicar do pai a mesma remuneração paga aos filhos machos. (...) Pela atitude de rebeldia da adolescente, o pai aplicou o castigo. Decidiu colocar Conceição no famigerado “trem de doido”, único no país que fazia viagens sem volta. Em 10 de maio de 1942, ela deu entrada no hospital, de onde nunca mais saiu. Em trinta anos, nunca recebeu visita (ARBEX, 2013, s/p).
Casos desse tipo e ainda piores constituem essa história que, infelizmente, em pleno século XXI, precisa ser relembrada para não haver uma repetição de erros nesse nível.
Portanto, recomendo a leitura de Holocausto brasileiro e, para quem não é muito afeito à leitura, há o documentário de mesmo nome disponível na íntegra no youtube, acesse AQUI.
Dito isso, gostaria de fazer umas observações sobre a contribuição desse mês. Demorei, mais ou menos, uma hora e meia para escrever esse texto, em dois dias (depois do primeiro esboço, precisei de um tempinho para pensar). Fiz uma pesquisa na Internet sobre essa história de reativar manicômios e utilizar técnicas de eletrochoque em pacientes e, após, peguei o livro (no Kindle) e li algumas partes grifadas (foram muitas) para refrescar a memória, pois li ano passado, e assisti o documentário indicado.
Resumindo: escrever sobre algo (com o mínimo de comprometimento) exige da gente. Pode ser apenas um comentário breve sobre um livro, mas não há desculpas, a rapidez da Internet não pode ser uma desculpa para o descaso e o desrespeito à informação. Não podemos confundir, portanto, dinâmica com desleixo.
Encerro a participação de hoje com mais um trecho de Eliane Brum no prefácio de Holocausto brasileiro:
É preciso perceber que nenhuma violação dos direitos humanos mais básicos se sustenta por tanto tempo sem a nossa omissão, menos ainda uma bárbara como esta (ARBEX, 2013, s/p).
Não sejamos omissos. Não façamos concessões. Não esqueçamos nada.
Marielle Franco e Anderson Gomes – 337 dias de um crime brutal, com muitas suposições e sem resposta definitiva.
Mestre Moa – morto em oito de outubro de 2018 por questões políticas.
Inúmeros transexuais e homossexuais agredidos e/ou mortos brutalmente num país que endossa o discurso de ódio nas suas mais altas esferas, a começar pelo sujeito que ocupa o cargo da presidência.
Crime ambiental em Brumadinho (MG) – 25 de janeiro de 2019, uma barragem da empresa criminosa Vale rompeu, causando a morte de mais de 160 pessoas (as buscas continuam, portanto esses dados podem estar bem diferentes quando você estiver lendo esse texto).
Incêndio do Ninho do Urubu – 8 de fevereiro de 2019. Com dez jovens mortos e três feridos, não dá para chamar o incêndio de fatalidade, uma vez que o Flamengo não estava em dia com as exigências legais do espaço.
Eu não quero mais nenhuma tragédia, mas o mundo não se baseia no nosso querer. Nesse momento, todos os jornais noticiam o acidente de helicóptero que matou o jornalista Ricardo Boechat. Vai ser todo o dia assim?
Suellen Rubira é doutora em Letras – História da Literatura pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Ama livros e música e fotos de animaizinhos fofos.
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