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Loiracy

Sonho que regresso a casa. Há cheiro de feijão novo na cozinha, a panela de pressão a todo vapor. Minha avó me sabe chegando, na ponta dos pés, ao corredor. Conhece-me pelos passos, porque a miopia de quase trinta graus lhe fez aguçar os ouvidos. Dá uma risada frouxa, um oi estendido, meio agudo, vem a passos lentos para o abraço. Fechamos os olhos no entrelaçar dos braços, congelamos o instante. No regresso que a memória ainda me permite realizar, nós não sabemos ainda, mas já há entre nossos dois corações um pâncreas a apresentar irregularidades.

Minha avó faleceu na madrugada de anteontem. Eu não estava com ela, nem na morte, nem no velório, nem no enterro: há alguns meses eu havia comprado uma passagem de avião para a Colômbia. Concluído o tortuoso caminho do doutorado, vim ver minha melhor amiga e daqui mochilar por um mês, realizando um sonho antigo e um pouco assustador: o de sair sem rumo muito certo pelo mundo, obedecendo a esse nômade que me habita tanto e a quem nunca dei muito espaço. Vim talvez também fugir dessa morte iminente, essa dor lancinante que o câncer em fase terminal nos impõe. Nos meus últimos anos, perdi já um número considerável de afetos para essa corrosão autodestrutiva do corpo. Vi sorrisos converterem-se em gemidos de dor, vi o rosto das pessoas que amo desafigurarem-se, os ossos consumindo a carne até o limiar da pele. Vi os olhos míopes agitados de minha vó esvaziarem-se de sentido, perdidos sem horizonte. De todas as dores dessa morte lenta e agoni(z)ante, o esvaziamento desses olhos foi das coisas mais dolorosas, pra mim.


Eu soube da morte de minha avó pelas lágrimas de minha irmã. Não soube ser afago, quis quase exigir que a pobrezinha usasse da razão por um segundo para dar suporte a minha mãe, que estava só. Enquanto a Amanda se desdobrava em choros, eu fazia questionamentos sobre a situação pós-morte, sobre o encaminhar dos processos dolorosos, falava sobre o que eu podia fazer estando aqui. Minha amiga, ouvindo-me meio surpresa, me olhava com ternura, oferecendo abraço. Sabia do que se escondia sob a minha casca. Mas eu não soube chorar com a morte de minha avó.


Quando soubemos do câncer, há um ano, eu também não estava por perto. Voltei para casa quase em desespero com a possibilidade de que minha avó falecesse sem nos despedirmos. É engraçado como a morte nos deixa alertas para a urgência dos afetos, eu que nos últimos anos não fazia questão nenhuma de ir à casa de minha avó, sempre tão amarga e desgostosa da vida, por vezes mesmo cruel com minha mãe. O câncer nos reaproximou, apesar de não ter diminuído o embate dos gênios – algo de que ela se orgulhava, no fim das contas, atestado indubitável de minha genealogia materna. O câncer de minha avó andou lado a lado de uma série de ciclos da minha vida, em pouco tempo: viu eu me apaixonar por um menino ruivo com quem passei boa parte do ano, viu eu ingressar na tão sonhada (mas negada) graduação em teatro, me viu acompanhar temeroso a possibilidade de que a ex-namorada com quem dividi sete anos de vida estivesse também com câncer, me viu entrar em depressão com o turbilhão de dores que atravessaram a construção dolorida e desorientada de uma tese que eu escrevi muitas vezes com o coração sangrando. O câncer de minha avó acompanhou nossa reconstrução.


Quando ainda podia sorrir, minha avó se enchia de vida pra dizer que o abraço do meu ex-namorado encaixava no dela com perfeição, sabendo que, com isso, eu simularia uma pequena cena de ciúmes, dizendo que eu era o neto etc e tal. Eu vi que a coisa andava grave quando um dia, tendo ele ido vê-la depois do nosso término, ela chorou e quase não quis abraçá-lo porque não queria me magoar, os olhos baixos e no discurso a certeza de que havia já pouco tempo para as desavenças. Tivemos de contar-lhe o óbvio dos gracejos.


Minha vó faleceu com fome, não podia mais comer. Das últimas vezes que nos vimos, minha mãe tinha de dar-lhe água com algodão. Tendo sido trasladada para a casa de minha mãe, ela ficou até o dia de sua morte num quarto ao lado da cozinha. O Lucas, meus pais e eu é que fizemos o transporte e instalação do quarto original dela para lá. Desde que minha avó foi para a casa de minha mãe, eu já não conseguia comer lá. Sentia muita sede, apenas. Doía-me pensar que ela, senhora dos olfatos, estava a uma parede de distância sentindo o aroma do impossível.


Quando a ciência já não nos podia ajudar, recorremos ao sagrado. Implorei a Oxum que auxiliasse minha avó a partir. Ela mesma já implorava por isso, não suportava mais a própria situação. Mas, nos círculos do sagrado, foi Iansã quem cumpriu comigo o papel de intercessora. Era ela quem me abraçava e me dizia palavras de conforto. Foi ela quem me avisou, antes de minha irmã, da passagem de minha avó. “Às vezes, precisamos sacrificar o que mais amamos”, me disse.


Eu me despedi de minha avó no último domingo, antes de sair de Rio Grande. Entreguei-lhe um presente para cuja caixa ela olhou e disse, entristecida, que não podia comer. Eu sorri e disse que não se tratava de comida, mas de perfume, que a Oxum vaidosa da casa sempre gostou de um cheirinho. Minha avó sempre me chamou de “cheirosão”, tinha paixão pelos perfumes. Abracei o que ainda restava do corpo de minha avó, beijei-lhe a fronte, disse que a amava. Ela repetiu o “eu te amo”. Fui para a cozinha chorar abraçado em minha mãe. Meu eu-menino partiu de Rio Grande aos prantos, e se fechou em mim.


Hoje apenas consegui escrever algo sobre minha avó, a mente e o coração ainda colchas de retalhos a tentarem ordenar algo aqui dentro. Com o fim do ano se instaurando, o fechamento dos ciclos convoca-nos às retrospectivas. A minha, este ano, passa necessariamente pela existência de minha avó como eixo.

Minha avó foi para mim uma incessante redescoberta, e as palavras que eu escrevo, por mais numerosas que sejam, parecerão sempre insuficientes. Sei que a carrego e carregarei comigo ainda por muito tempo, enquanto a memória não me trapacear. Fico então aqui com o sorriso manchado de batom da boca de lábios muito finos, herança física que se inscreveu em mim, o abraço terno e o cheirinho de amor dos perfumes que ela tanto usou. Acredito que também ela tenha ficado com o meu perfume e o meu gosto pelas viagens, essa vida pulsante nos olhos curiosos. Muito temerosa, ela pouco viajou. Sempre disse que gostaria de ir a Portugal. Espero poder ir lá ainda com ela, e rir dos pássaros. Ainda que vazios, acredito poder ter dado a ela um pouco de vida pelos meus olhos, esses rios contidos.


Falar de minha avó, hoje, trouxe de volta o meu eu-menino, escondido nas conchas de Iemanjá.


Giliard Barbosa é um tanto de caos que, ao nascer, recebeu da mãe o nome de um cantor, com um L a menos, pra não complicar. Ordenado pela palavra, o rapaz encontrou na poesia uma forma de cantar a ausência. Professor do Instituto Federal, Giliard tem mestrado em História da Literatura (FURG) e está em vias de concluir seu doutorado (UFRGS). Interessa-se pela palavra poética, e seu foco de pesquisa tem sido a escrita de mulheres e(m) trânsitos.

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