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Matou a ANCINE e foi ao cinema

Hoje, saindo de casa e passando pela frente do Cine Dunas, um cineminha daquelas aconchegantes e intimistas, reduto local da resistência e do amor aos tempos e movimentos das imagens, dei de cara com o pequeno cartazfotocópia de Dor e glória (2019), último filme de Almodóvar. Pra ser honesto, nem lembro se ainda está em cartaz ou se o lembrete era um resquício, passei correndo pra chegar na parada e não perder o ônibus. Sentado no ônibus e olhando meio pela janela, meio pro nada e meio pro outro aquele que sou eu e que volta pra mim no reflexo do vidro, comecei a pensar no quanto eu deveria ir muito mais ao cinema. Encontro sempre todas as desculpas do mundo pra não ir tão seguido. E, mesmo que eu não as quisesse encontrar, elas, em um esforço digno dos incansáveis credores nos gibis do Zé Carioca, dariam um jeito de fazer contato e cobrar a culpa das constantes tentativas de ignorar a vida-lá-fora. Mas aí levei um susto. E lembrei que há uma investida – ou uma ameaça, se vocês preferirem – assombrosa contra a cultura no Brasil. E lembrei que a ANCINE, a Agência Nacional de Cinema, é uma das bolas da vez na estúpida agenda da nova barbárie brasileira. Eu sei que o cinema não vai morrer. Eu sei que o cinema independente vai indo. Eu sei que a difusão da cultura, da arte, do cinema e assim por diante não precisa ser exclusividade de instituições como a ANCINE. Eu sei que até existe coisa máômênos acontecendo no cinema nacional nos últimos tempos. Mas sei, também, que começa por aí, como um carinho na nuca, como um abraço dissimulado no pescoço, até que vai ficando mais apertado e a gente, que deixou as mãos chegarem até ali, não consegue reagir e morre sufocado, devagar, agonizando e implorando pra que a gente mesmo nunca tivesse aceitado o mata-leão, o estrangulamento disfarçado de cuidado, de preocupação com o nosso pescoço. Essa tentativa de assassinato é anunciada com tom moralista: “vamos acabar com essa infestação comunista, com a promiscuidade, com a pornografia”, com as ideias, com as denúncias, com a ética e com a estética que ainda se apresenta como resistência, mesmo na comédia mais morninha, mesmo no alívio cômico exagerado, mesmo com qualquer pequeno desejo de transgressão. O algoz mirou o machado no pescoço de Bruna Surfistinha. Mirou por não ser difícil convencer os desavisados que não se trata de um filme de putaria. Tudo é putaria no imaginário do perverso. Mesmo em filmes de maior apelo popular, como o próprio Bruna Surfistinha (2011), estão ali, em diversas camadas pra gente ir descascando ou percorrendo, os próprios sintomas do mal-estar na atualidade, como diria Birman. Estão ali as complexidades e as representações – mesmo quando de maneira relativamente superficial – da condição humana. Estão ali os afetos e a vulnerabilidade. Estão ali os abusos e os traumas, o capital como crise e a crise como acessório da violência e da dessubjetivação, do uso do corpo, das relações de poder. E é isso que assusta essa gente que quer enterrar vivo qualquer sujeito que ouse botar um dedo na feriada ou problematizar o bom e velho bom-mocismo. E o cinema – e a arte, em geral – serve, também, pra isso. A necropolítica de Mbembe está ali, tal qual descrita pelo autor, nefasta e aniquiladora, decidindo sobre a vida e a morte das gentes e das coisas, ou, ainda, sobreo uso das coisas e das gentes pelos poderes até que elas morram drenadas, esquálidas, sem suco, sem vigor, sem brilho, sem afeto e sem resistência. Carcaças que servem em vida ao desejo e à pulsão de morte. A fantasia da impotência do outro é o gozo sádico dessa trupe que faz malabarismo com a existência das pessoas e, ao mesmo tempo em que prega uma exatidão moral sem precedentes, senta e dá risada com a boca cheia de pipoca e os dentes grudados no milho amanteigado de um American Pie qualquer. Recentemente decidi, numa proposta de estudo, voltar lá pro Cinema Novo, olhar de novo pra toda aquela produção e pensar nas relações com lá e cá e com o que veio antes e o que pode vir agora. Também tenho conversado com a estética e a obra do Almodóvar, com Lacan e Foucault num cruzamento de olhares com seus filmes. Como pensar o cinema do espanhol sem pensar corpo, sem pensar dor, sem pensar sofrimento, sem pensar desejo, sem pensar violência, sem olhar para toda putaria que comove e desassossega a moral do cidadão de bem? E eu, que embarquei nessa de trabalhar com cinema nos próximos tempos, fico lá na janela do ônibus, entre pinheiros e plátanos da estrada, tentando ajustar o nó da forca em meu próprio pescoço e me perguntando se ainda vale a pena, se ainda tem jeito. E a resposta é sempre a mesma: não podia ter momento melhor pra isso.


Régis Garcia é músico, psicólogo, professor, cachorreiro, curte barulho, ruídos, vinil, cinema, literatura, experimentalismos e esquisitices em geral.

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