Para a minha amiga e entusiasta da cerveja, Ju Blasina.
Sempre ouvi falar que era feio mulher beber. Que homem gostava mais, que era mais resistente. Que cerveja pra mulher era só a Malzbier. Parece que até as grávidas podiam tomar de vez em quando, que ajudava a criar leite (!). Bebida forte e amarga era coisa que não nos pertencia; às mulheres, o que era doce e fraco, pra combinar com a nossa ~ fragilidade natural ~. Isso parece papo ultrapassado, eu sei. Mas, em janeiro de 2017, uma grande cervejaria brasileira lançou uma versão especialmente dedicada ao público feminino: a Lite American Lager em questão, batizada de “Mulher – Rosa vermelha”, era descrita como “delicada e perfumada, feita especialmente pra você, mulher”. Aparentemente, o tiro saiu pela culatra e o anacronismo ficou evidente demais, o que resultou em uma onda de críticas contundentes por grande parte das consumidoras mais assíduas.
Historicamente, cerveja sempre foi coisa de mulher. Desde os antigos sumérios, lá por 4000 a. C., as mestres cervejeiras (sabtiem) gozavam de alto prestígio e reconhecimento social. Até o século 16 na Alemanha, os utensílios para a fabricação de cerveja estavam incluídos no enxoval das noivas. Conta uma lenda escandinava, que a imortalidade de um guerreiro viking só estaria garantida se ele tivesse bebido a cerveja feita por uma Valquíria (deidade que selecionava os mortos merecedores de viver no Valhalla). Entre os incas, as virgens sacrificadas preparavam a Chicha, uma cerveja de milho oferecida a Inti, o deus Sol, antes de se despedirem desse mundo. A própria esposa de Martinho Lutero, Catarina de Bora, foi uma renomada cervejeira. E era bastante comum que um homem escolhesse sua noiva levando em conta seus dotes com as panelas de cerveja.
As mulheres só perderiam o domínio na produção no século 18, quando empresas maiores surgiram e a cerveja passou a ser produzida em larga escala. Não era permitido na época que elas participassem ativamente de atividades comerciais, além do fato de que boa parte delas era analfabeta, o que dificultava bastante as coisas. Elas ficariam restritas ao espaço da casa até a Primeira Guerra Mundial, quando reassumiriam seus postos, substituindo os homens em combate nas fábricas. Entretanto, apenas no final do século 20 as profissionais cervejeiras e as consumidoras voltariam a ocupar um importante espaço no mercado, até hoje um lugar social de muita luta e resistência.
Uma das pautas do movimento feminista diz respeito à liberdade sobre nossos corpos. E escolher o que iremos beber passa por isso. Então me parece estranho que atualmente a cerveja seja ainda tão “naturalmente” associada ao universo masculino. Quantos homens receberam copos, abridores e cervejas de presente nesse Natal? E quantas mulheres? Quando um casal vai a um bar e pede uma água e uma cerveja, quantos garçons de fato perguntam para quem é a cerveja? Quantas vezes tive que dizer que a-água-é-pra-ele? Por quantas décadas a publicidade se serviu de imagens de mulheres seminuas e em situações vexatórias em comerciais de cerveja para atrair o público masculino, desconsiderando completamente as consumidoras?
Ainda assim, é animador ver que cada vez mais mulheres se interessam por cursos de produção, harmonização e degustação de cervejas. Saber que em um famoso reality show cervejeiro a campeã de 2018 foi uma mulher, a primeira em 9 edições do concurso. Que são muitas as sommelières que se destacam nesse meio, além dos coletivos feministas de produção que se espalham pelo país, levando nossa assinatura e nossa luta nos rótulos e provando que cerveja é, enfim, coisa de mulher. Como poderia ser diferente?
Escrevo essa coluna enquanto ergo um copo da Red Ale batizada de Volcán, de cuja produção eu participei ativamente. A sensação de ancestralidade me invade, enquanto penso que ainda temos um longo caminho pela frente, até que todas tenhamos de fato corpos e copos livres de todo o preconceito. Escrevo enquanto penso em minhas amigas cervejeiras. Brindo com elas mentalmente, invocando Ninkasi, Hathor e todas as Valquírias. Saúde pra nós e coragem, gurias!
Juliana Cruz é professora de História, feminista, cervejeira e cassineira apaixonada.
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