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Nós, dissonantes

Eu me recuso a rimar amor com dor. Ou com flor. Com o que for, para facilitar sua vida. Não tenho culpa se você não entende que entre aqui e mais adiante existe uma pedra. Em quase todo caminho existe uma pedra. Não fui eu quem colocou a pedra. E nem sempre uma pedra é só uma pedra. Muitas vezes não é. Ainda mais uma pedra no meio do caminho. Mas você pode escolher que ela seja, só isso, uma pedra, e ficar repetindo de trás para frente, e do avesso, como se fosse apenas no meio do caminho a pedra, e como se Drummond fosse simples, fosse isso, e como se a vida não fosse complicada, e o caminho tão cheio de pedras ao meio e a poesia, tão grande que não caiba num só caminho.


Quando te escuto assim, cheia de preconceitos, menina, julgando a arte pelo que você pensa que ela tenha que ser, eu lembro do Fernando Pessoa, dizendo que a arte é o que nos tira daqui, e o daqui é tantas vezes esse pouco, o cotidiano vazio de acordar, trabalhar, comer, pagar contas, com sorte dormir, por vezes rezar, amar, com ainda mais sorte, ser amada.


Quando te vejo assim, tão certa de que estamos errados, tão cheia de terra nos pés e nos olhos, andando em linha reta, apressada para lugar algum, eu quero te gritar que é a arte que nos salva, que foi Nietzsche quem falou que temos a arte para não morrer da realidade, e a realidade, menina, ela mata.


Ela pode matar.


Você que não é poeta, me mostra um poema, "olha que coisa horrível". Isso, aquilo, assim, desse jeito, não é arte.


Porque não te representa, você não entende as palavras do dialeto que não aprendeu, você se incomoda com os corpos e os sentimentos expostos nas galerias dos lugares onde nunca pisou, esbraveja contra tudo que fere teu mundo, esquece que o mundo é maior, ele é vasto, e que a rima não é solução, você não quer ser gauche na vida, e você pode não ser. Afinal, seu nome não é Carlos, nem é Raimundo.


Mas tem quem se chame assim.


Não desdenha, menina, do nome do outro. Da poesia da outra que não cabe em ti. Todas as narrativas importam, quer se goste ou não. Para mim, desde sempre, as coisas só fazem algum sentido quando transformadas numa história. Seja um filme, canção, poema. Um romance. A arte serve para isso, ressignificar. Incomoda e desacomoda, tira nossos pés do chão, põe os olhos a dançar. Ela não é piedosa. Ela é a pedra, no meio do caminho - e dentro do sapato.


Mas é a pedra necessária.


Já disse Ferreira Gullar, a arte existe porque a vida não basta. E a vida, menina, como algumas poesias, não é fácil de entender. Pode ser bonita, pode ser feia, pode ser tudo.


Só não tem rima fácil.


Trabalho como médica, me traduzo como escritora. Saí de um lugar para onde não pretendo voltar. Agora sigo os desvios, marcando com pétalas e palavras meus descaminhos. O amor errado mais certo do mundo (Concha Editora, 2017) é meu livro de estreia.

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