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Ninguém solta a mão de Eduardo Galeano

Atualizado: 22 de mar. de 2019

Não lembro por que, certo dia, comprei um livro do Eduardo Galeano; chamava-se O teatro do bem e do mal, em uma edição de bolso. Durante muito tempo, o livro ficou rolando entre as prateleiras da estante, quando, finalmente, decidi ler esse título talvez pelo mesmo impulso que me levou a comprá-lo: a existência dessas duas palavras mágicas, o bem e o mal. Foi uma leitura surpreendente. Não era um texto teatral. Não eram evocadas peças teatrais, nada era teatral além desse elemento envolto em drama e riso, o mundo. Artigos curtos sobre os mais variados assuntos e coisas que haviam acontecido “de verdade”. Até então eu não sabia que o Galeano era jornalista – tenho essa mania de nunca me informar sobre a vida dos autores, aí, dá nisso e essa quebra de expectativa foi muito positiva. Nesse movimento ensaístico, aprendi muita coisa sobre economia capitalista e Estados Unidos sem precisar me afundar em livros sobre o assunto. E o fato do mundo ser como é e termos (alguns de nós, né) discernimento de quão injustas e complexas as coisas são, confiei no Galeano logo de cara.


Depois dessa primeira incursão, muitos outros vieram: De pernas para o ar, O livro dos abraços, Mulheres, Vagamundo e Os filhos dos dias – escolhido para ser comentado hoje.


O livro divide-se em 12 capítulos, os 12 meses do ano descritos nos seus 366 dias. Cada dia comporta um fato histórico, mas sem seguir uma ordem cronológica. Podemos estar na pré-história ou no atentado de 11 de setembro, pouco importa. E isso é o mais interessante. Os filhos dos dias é uma sequência aparentemente caótica de coisas terríveis e coisas incríveis da história. Através desse caos temporal, Galeano mostra o quanto a história se repete, sendo impossível, portanto, observá-la como algo que “evolui” rumo à perfeição, ao ajuste contas da civilização.


Nessa ocasião de leitura descobri que no dia 15 de janeiro (meu aniversário) de 1919, Rosa Luxemburgo foi assassinada. Vou transcrever como esse acontecimento foi interpretado por Galeano, pois é um belo exemplo de como o livro se constrói:


15

O sapato


Em 1919, a revolucionária Rosa Luxemburgo foi assassinada em Berlim.

Ela foi arrebentada a coronhas de fuzil pelos assassinos, e depois jogada nas águas de um canal.

No caminho, perdeu um sapato.

Alguém recolheu esse sapato, jogado no barro.

Rosa queria um mundo onde a justiça não fosse sacrificada em nome da liberdade, nem a liberdade sacrificada em nome da justiça.

Todos os dias, alguém recolhe essa bandeira.

Jogada no barro, como o sapato. (GALEANO, 2012, s/p).


Creio – e nisso deve haver unanimidade – na existência da ficção dessas pequenas histórias com H maiúsculo; Galeano narrou a grandiosidade do fato, da guerra, da revolução, dos grandes homens e mulheres e adicionou dados tão triviais quanto um sapato jogado no barro para lembrar-nos da fragilidade da vida, da repetição da história e, com isso, a sequência de erros a qual abraça a humanidade.

Tenho publicado muitos textos sobre coisas tristes, sobre violências e intolerância e, dessa vez, não quis manchar a tela de ninguém de sangue – outros meios de comunicação já tem o feito. Acredito na importância da informação, da empatia, do processo de conhecimento – que se dá aos poucos, mas ele só se faz através da vontade de conhecer. Por isso, convido a todas as mulheres e homens a conhecer Galeano. Deixem-se envolver pelas palavras do escritor uruguaio. Ele é ótimo naquilo que faz, mesmo quando fala sobre coisas tristes.


Nesse calendário-máquina do tempo, muitos acontecimentos são curiosos, bonitos, engraçados. Eduardo Galeano conta como o FBI vivia “boladão” com o Albert Einstein, achando que o brilhante cientista de cabelos espetados era, de fato, um espião de Moscou. Nessa neura do FBI, o Einstein não só era comunista como era o diretor de organizações desse viés. O fato da espionagem é um gancho para comentar uma investigação muito mais invasiva, como se percebe pelo modo como Galeano encerra a sua narrativa do dia 18 de abril (do ano de 1955, quando Einstein morreu):



Nem a morte o salvou. Continuou sendo espionado. Já não pelo FBI, mas pelos seus colegas, os homens da ciência, que cortaram seu cérebro em duzentos e quarenta pedacinhos e analisaram um por um, à procura de explicação de seu gênio.

Não encontraram nada.

Einstein bem que tinha avisado: – A única coisa de anormal que tenho é a minha curiosidade (GALEANO, 2012, s/p).



Depois de terminar Os filhos dos dias, comecei, despretensiosamente, a leitura de Os nascimentos, primeiro volume da trilogia Memórias do fogo, onde Galeano percorre a história da América Latina, desse jeito dele. Depois de tantas coisas pelas quais temos passado, é bom ter essa mão para segurar. Ela afaga, acalma e mantém a nossa memória viva, devolvendo uma fagulha de esperança para continuarmos acreditando.


Suellen Rubira é doutora em Letras – História da Literatura pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Ama livros e música e fotos de animaizinhos fofos.

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