Sentada no sofá da sala, viajo entre meus livros. Às vezes sou distraída pela luz piscante do temido, amado e odiado aparelho. Viro-o com a tela para baixo. Resolvido.
De repente, o grito me puxa do torpor. Já é um velho conhecido.
A mãe chama pelo menino.
Se eu, sentada no sofá da minha sala, levei um susto, imagina só o menino.
É um grito alto, esganiçado, raivoso no fim.
"Arthur, vem pra dentro!"
"Fecha o portão, cara!" (Ele tem 5 anos)
"Sai daí, não mexe aí!"
Nossa, que susto. Toda vez.
Eu já deveria estar acostumada, mas todo dia, toda hora, é hora do Arthur "vir pra dentro".
Mas meu pensamento vai além. Não tenho como evitar pensar sobre a vida deles. Moram quase ao lado da minha casa. Falam alto.
A mãe vive espraiada na rua com o Arthur e uma bebê num carrinho. Essa ainda não sei o nome. Ela ainda não caminha ou fala, então...
O pai nem se enxerga. Se bem que esses dias ele me ofereceu a filha bebê: "boa tarde, vizinha! Quer pra ti?" E eu "bah, assim já prontinha?" Eu ri. Ele riu. A mãe não. Nem me olhou. Nunca trocamos palavra.
Às vezes acho que moro no quintal da casa dela. Pouco fica dentro de casa.
Já são dez meses que eu a vejo pra lá e pra casa. Uns dias um tanto serelepe, outros arrastando os pés, noutros pisando duro. Gritando, xingando, brigando e indo na casa dos parentes que também são nossos vizinhos.
Não posso evitar olhar para ela.
É uma mãe-criança que cuida e grita. Que bate e ama num constante grito-amor. Como a gente fazia quando era novinha e brincava de boneca.
Tenho vontade de mandar calar a boca e abraçá-la ao mesmo tempo. Talvez eu dissesse "cala a boca, e agora vem aqui e me dá um abraço". Tá tudo bem mãe-criança!
Vai ficar tudo bem! Já ouço o Arthur desobedecendo mais uma vez. Deixou o portão aberto.
Grace Borges. Rio-grandina de presença e alma. Devoradora de palavras, arrisca alguns poemas quando lhe dói, uns contos quando com raiva e crônicas quando a cabeça está cheia. Formada em História Bacharelado e Licenciatura, promete que não é doida. Professora de escola pública. Possui praticamente uma única rede social, o Instagram, onde publica algumas fotos, suas leituras e seus textos desde 2016.
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