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Pequena terapia para queimar os dias

Muitas são as coisas cotidianas que me irritam: cheiro de comida fria; perfume floral; digitais nas lentes dos meus óculos; mensagens de áudio; telefonemas; som da televisão dos vizinhos, da música dos vizinhos, das vozes dos vizinhos, qualquer coisa que envolva vizinhos e eu sempre morei em apartamento; o sumiço misterioso das canetas quando se tem urgência e papel; atrasos, o meu incluso; viajar ao lado de homens estranhos que ouvem áudios no celular sem fones; viajar ao lado de homens estranhos; homens estranhos. Soma-se à lista meu filho dizendo manhê, manhê, manhê 1342 vezes enquanto escrevo este texto e, por isso, uma pausa forçada agora.


O efeito contrário vem num banho escaldante tomado na penumbra, porta entreaberta, luz da outra peça entrando sem invadir; cheiro de canela na cozinha da minha mãe enquanto o arroz de leite que eu não como descansa morno sobre a pia; tirar a meia de um dos pés entre o lençol e o cobertor; ler um poema antes de sair da cama; ler um poema; o ronronar felino; inspirar fundo no meio de um abraço de dez segundos - o de vinte me agonia; café passando.


Água fervente me acalma. Talvez o vapor, o chiado, a mudança de estado físico. Não defino a causa, digo o efeito. Talvez a ayurveda estivesse certa. Ayurveda é a medicina mais antiga do mundo. Indiana. Há sete mil anos classificando as pessoas em doshas: vata, pitta, kapha e suas variantes, conforme a quantidade de elementos dentro delas e não estamos falando em órgãos. Água, fogo, terra, ar e éter. O desequilíbrio momentâneo versus a harmonia utópica. Momentâneo porque muda com a composição dos pratos, os hábitos de sono, os caminhos que se toma na vida. Eu já guardei mais fogo, hoje estou kapha. Um belo jeito de dizer que sou uma pessoa fria. Um lagarto à procura de sol. Exceto que eu prefiro a água.

Às vezes eu encho uma chaleira, a leiteira e duas canecas de alumínio. Deixo o gás aberto por três segundos e então, risco um fósforo bem no meio. A chama corre sobre o fogão em todas as direções, uma pequena explosão, as grelhas vibram. Lembra um acidente nuclear em miniatura visto de cima. Quatro bocas acesas para ver a água borbulhar na escassez de carbono do fogo azul.

O fogo das velas é um fogo hipnótico. O da lareira, o do papel crepitando no cesto de lixo com as cartas do ex. As fotos não queimam como nos filmes. As fotos derretem tortas e consomem o vermelho do fogo. Elas pedem mais álcool, mais álcool e você joga até que a labareda se erga lambendo as suas sobrancelhas, com sorte, não mais que as pontas dos cabelos, e você fede e chora sem muita expressão facial.


O fogo azul queima os dias modernos num acesso de vingança. Não vejo nele nada de hipnótico, tampouco no fogo vermelho, mas nas bolhas d'água. As primeiras surgem tímidas. Então se multiplicam. Estouram numa frequência harmônica e progressiva. As primeiras bolhas dançam o Bolero de Ravel. As últimas se atropelam, engolem umas às outras. E tudo se acalma. Uma onda espessa de vapor sobe e some na paz mais profunda que eu já experimentei. Algumas bolhas ressurgem após o fogo extinto. São essas as minhas favoritas.


Sobre Ju Blasina:

Nascida em Porto Alegre, crescida em Rio Grande, Ju Blasina é poeta e feminista. Cursou biologia e letras pela FURG. Publica em e-zines e jornais de sua região desde 2009. Lançou dois e-books independentes (2010 e 2014) e seu primeiro livro, 8 horas por dia, pela Concha editora em 2017.

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