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Prefiro Não

Atualizado: 2 de set. de 2019

Mulheres são desprovidas de senso de direção. Ainda assim, são menos responsáveis pelos acidentes de trânsito, o que é uma forma injusta de dizer: mulheres são melhores motoristas. Eu não. Não dirijo, nem boa pedestre sou, levo meia hora para atravessar uma rua. Não sei andar de bicicleta. Não sei qual é a dificuldade de se entender que o divisor do caminho entre o sexo e o estupro é o não. Mudei de assunto. Era de se esperar. É o que as mulheres fazem. Elas mudam de assunto, não são boas de direção, confiam em homens que conheceram no Tinder, no bar, na faculdade, no casamento da prima de segundo grau. Fazem sexting, mandam nudes, fazem sexo casual e fariam mais se os caras colaborassem.


Essa é uma crônica hétero normativa. Gosto de pensar que a vida lésbica me daria menos do material que move minha escrita - são os índices de feminicídio que me fazem acreditar nisso. A maior causa mortis das mulheres é o homem. Assim, no singular, tudo num balaio só. Os sentidos do homem são programados - pela sociedade, não por deus ou a evolução de Darwin - para rejeitar o não. Uma falha na resposta motora. O não: uma ameaça à permanência do homem em seu status quo. Daria um bom título de TCC. O não desperta no homem o contrário do que sugere. De forma que, para a manutenção de nossa integridade física, moral e psicológica, para escapar às estatísticas da lei de 2015, cabe às mulheres saber quando usar o não, não? Não. O não, todo ele, mesmo ou justo o que separa o sexo do estupro, pode surgir a qualquer momento. Por qualquer motivo. Nem precisa de motivo.


Não é não.


Quem, em plenas preliminares, descobriu um cara que se nega a usar camisinha, viu a metamorfose de Kafka se desenrolando diante dos olhos. Um cara que antes estava de boas com tudo o que se propunha. Então se faz de desentendido. Então força a barra. O não faz craquelar a superfície do cidadão de bem. Um cara comum, um cara legal, foto com vó, cachorro, camiseta do Belchior. Uma antena, depois uma pata, depois o bicho inteiro. Difícil alguma de nós não ter visto. E assim o sexo consensual pode virar:


a) uma longa e brochante D.R.;

b) uma amizade virtual desfeita, segue a vida;

c) um estupro.


Contorno a terceira opção. Num determinado momento, estive num motel com um sujeito do passado e disse não. Eu disse não, vesti minha roupa e fiquei lá, deitada sobre os lençóis, refém da insistência do homem até o amanhecer. Vez por outra, reforçava minha negativa, firme como um Bartleby. Na época, não enxerguei a gravidade da situação. Como também não enxerguei da vez em que o carinha com quem eu saía não transou comigo bêbada, desacordada, calças arriadas sem a minha vontade. Não transou porque o nome disso é estupro. Cada vez que ligo uma lanterna sobre o passado, descubro as violências que não fui capaz de enxergar na penumbra da presente.


Penso o que aconteceria se eu gritasse, se eu quebrasse uma garrafa na cabeça do sujeito. Se eu fosse além. Um ato para a angústia que o não tenta comunicar, miseravelmente. Vejo no espelho o craquelar do meu rosto. Pode acontecer com qualquer um. Com qualquer uma. O bicho é o mesmo, sem gênero, apesar do artigo: a fera, a besta. Nossa carapaça que é mais resistente. Somos condicionadas, desde cedo, boa garota, eles dizem, boa a garota sem senso de direção, e nos dão um biscoito light. Aprendemos, não a domesticar a fera, aprendemos a zelar pelo sono dela. Lá no fundo, entre as costelas deformadas pelo espartilho das antepassadas brancas. Pelo peso do homem branco fazendo filhos sobre todas nós. Sobre as negras, um peso maior, esmagador.


Nos pedem que andemos pelo mundo de pantufas. Desnorteadas e silenciosas. A pele intacta da Marina Morena limpando o rosto sem dizer não. Base, pancake, pó de arroz. Somos condenáveis desde as primeiras ranhuras. O despertar da nossa fera, caso ocorra, é singular. Não que lhe falte fôlego. Falta uma segunda chance. O homem não perdoa nossa monstruosidade. Ele tem a chave do grande portão da Lei. Nós somos a que espera e envelhece do lado de fora. Não. Nós éramos.


Sobre Ju Blasina Nascida em Porto Alegre, crescida em Rio Grande, Ju Blasina é poeta e feminista. Cursou biologia e letras pela FURG. Publica em e-zines e jornais de sua região desde 2009. Lançou dois e-books independentes (2010 e 2014) e seu primeiro livro, 8 horas por dia, pela Concha editora em 2017.

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