acorda tarde, muito tarde, sempre a última, atrasada. bom dia, bom dia. atende as gatas. toma café enquanto planeja o almoço. lê vinte páginas de um livro novo antes de picar cebolas. a personagem visita um vizinho morto. Olga Tokarczuk é polonesa, conhece um tipo diverso que violência, não me assusta. volta para a terceira pessoa, fecha o livro, cozinha, serve, nem sempre almoça: perdeu o apetite na última segunda. um café com o bem, café passa. conta da série que ele perdeu dormindo, vai dizer uma coisa e se esquece (o corpo da menina tinha sinais de canibalismo). mais dez páginas para enganar a mente. descobre que hoje é sexta-feira, como pode, sexta-feira. atende o filho. organiza os documentos para um edital de cultura. lembra que esqueceu de remarcar uma consulta, lembra que esqueceu de pagar um boleto. confere um calendário de lacunas. registra o embrião de um poema. o celular apita: responde amigas no whats, amigas no facebook. atende as gatas, atende o filho. responde amigas no instagram, curte estranhos no instagram - todo mundo é feliz nos stories, será possível? ninguém lê as notícias ou conversa com as amigas sobre as mulheres mortas. se lessem, se falassem, não postariam tantos pães. "a pena por latrocínio é maior que a por feminicídio, vocês sabiam? ah, então é por isso. que merda. putamerda. não tenho um emoji pra isso. queria sovar um pão até fazer pedra. queria um dragão da khaleesi. o drogon. real. gurias, preciso sair, atender a criança, amo vocês, eu também, eu também". atende o filho, atende as gatas, trabalha. olha para a janela, as roupas dançam no varal desde ontem. não há de chover tão cedo. as roupas estão no fim de uma longa lista de urgências. um fedor de MERDA impesta a casa, limpa a areia das gatas, abre as janelas. trabalha. as gatas brigam. marido chega. tira máscara, sapatos e calças junto à porta. álcool nas mãos e banho. uma chatice os protocolos, oito meses e nunca se automatizam. só os vivos reclamam. marido atende o filho, faz torradas para todos enquanto ela trabalha no computador. não sei porque esse advérbio: marido atende o filho, faz torradas ponto, nova frase: ela trabalha no computador. é mais fácil escrever que escrever é trabalho do que repetir isso em voz alta. anos e anos tentando e nunca automatiza. melhor passar álcool nas mãos. ela escreve com uma amiga uma nota de revolta para um coletivo feminista. chama de revolta porque repúdio é pouco, repúdio é masculino, não dá conta. tem dessas implicância com as palavras e sinais gráficos (acredita que os parênteses, por exemplo, peçam sussurro, por isso não cabem numa nota de repúdio, digo, revolta). faz uma arte de revolta para o instagram. arte de revolta para o facebook. escreve revolta em letras vermelhas. então descobre um erro. a nota de revolta é insuficiente. é preciso editar, incluir outra morte por feminicídio, em São Lourenço do Sul: mulher é morta a tiros na frente dos filhos. "boa noite, meu bem, mamãe te ama". deitada na cama às 4h da manhã se percebe viva. deitada ao lado de um homem se percebe viva. isso é muito, mas quanto? porque está viva, ela não corta parágrafos, porque está viva ela desiste das maiúsculas. estar viva agora significa outra coisa, mal se pode respirar. porque está viva ela retorna ao poema. ele fala de Iemanjá: não a mãe, a estátua.

Sobre Ju Blasina:
Nascida em Porto Alegre, crescida em Rio Grande, Ju Blasina é poeta e feminista. Cursou biologia e letras pela FURG. Publica em e-zines e jornais de sua região desde 2009. Lançou dois e-books independentes (2010 e 2014) e seu primeiro livro, 8 horas por dia, pela Concha editora em 2017.
Comments