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Sobre a destruição

“Eu acho que não acredito mais na psicologia”. E na arte, e nas gentes, e em qualquer coisa. Eu tenho ouvido tanto nãoguentomais que nem sei por onde começar. E mesmo longe do fogo cruzado, ainda que no meio do tiroteio, a gente ainda sente toda a dor do mundo e não tem remédio e dói demais e a gente senta e come, senta e chora, senta e sente que tudo que dá pra fazer é ficar sentado assistindo. Eu senti um golpe duro com a ideia do estilhaçar das micro revoluções que se desenham quando nos colocamos a produzir o que quer que seja com nossas próprias mãos humanas e quando pensei que depois de um tempo a gente só quer lavar as mãos e as micro revoluções vão pelo ralo como se fossem pura sujeira encardindo o cano mais podre. Mas talvez o estender a mão da psicologia, essa arte-sanato(ria), seja um eterno ato micro revolucionário. E revolução é amor e amor precisa ser comido e comer e ser morrido e morrer.

E a gente morre o tempo todo, morre pra poder viver (já diriam os caras das pulsões). Morre sem querer. Morre cada vez um pouco mais e mais tranquilamente pra poder, finalmente, morrer e viver em paz. Fort-Da. Mas a morte matada interrompe o caminho do gozo e impõe o silêncio que não é resistência, que é submissão, que é mordaça e que rejeita e desconhece a própria falta, que é sempre a falta de algo outro na gente. Mas a gente se tortura. Cada realidade possível é uma pequena e lustrosa bolha que se abolha em outras bolhas. E quando a gente estoura uma delas a gente fica dentro de outra, boneca russa, meta-realidade. E se todo mundo estourasse uma bolha por dia? Não sei. E se não restassem mais bolhas, se tudo inflado murchasse e o ego virasse gosma radioativa em uma piscina de lodo primordial e a gente pudesse ressurgir como mutante, quimera, híbrido, conjunto ou conjunção sem ter medo da diferença e do desconhecido, sem ter que decretar emergência pra poder construir Berlim na América?


Esses dias uma pessoa querida demais me disse que não sabe se acredita mais na psicologia. Eu tento acreditar na psicologia por não entender qualquer coisa sobre ela. Na psicologia que rejeita e problematiza a condição da razão, do lugar definido, do papel e da performance incontestável. Na psicologia como extensão inegável e irrefutável do corpo e do ser. E, por isso, nas gentes. É imprevisível, é o próprio desconhecido, é espaço pra interpretação, tal qual a arte. É a reação imediata ao brutal e estúpido estandarte da razão e da certeza que sufoca a gente até a nossa prematura morte. Uma morte repleta das certezas do comum, da normatividade. Essa semana eu li, juro que tá lá em Heidegger, grosso e (não tão) simples assim: destruição. Despensar o pensado. Desouvir o ouvido. Desintegrar a verdade em partículas tão minúsculas que as micro revoluções voltam a fazer sentido. Não há nada que se possa fazer, mas, talvez, não há nada que se possa deixar de fazer. Mas há o amor, que, dizem, conhece o que é verdade, e é o que se sente. E tem gente que sente muito. E isso sempre será insumo para as artes, para as existências e para as resistências. Tudo que a gente pode fazer, do lugar de onde venho, é buscar compreender e aceitar a possibilidade de nunca chegar nem perto de saber qualquer coisa, mas, ao mesmo tempo, de sentir tudo. E tá tudo bem.


Régis Garcia é músico, psicólogo, professor, cachorreiro, curte barulho, ruídos, vinil, cinema, literatura, experimentalismos e esquisitices em geral.

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