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Somos todos fake news

Sempre ouvi dizer que existem duas dimensões do ser: a essência e a aparência. De um lado, aquilo que mostramos ao mundo. Do outro, nossa verdadeira identidade, o que nos é próprio e intransferível. Nosso dark side, que só compartilhamos com os mais próximos ou na solidão do quarto escuro. Na onda do senso comum tem também a ideia de que todos usamos máscaras, que em determinadas ocasiões caem e revelam quem somos de fato, tipo desenho do skooby-doo.


A origem dessa coisa toda tá no mito da caverna de Platão, aquele clichezão bem bacana que todo mundo deveria ler, aliás. Ou não.


Acontece que essa oposição tão exata não funciona na vida real. Pelo menos não na minha. Quando eu visto minhas máscaras, seja pra trabalhar, jantar com os amigos que amo ou participar de um evento contra a minha vontade, eu não deixo de ser eu mesma nem por um milésimo de segundo. Eu sou aquela que usa as máscaras, que faz as máscaras. A camuflagem adere à minha pele de tal forma que já não sei mais me separar dela em cada lugar ou momento. Penso que sou todas elas. Sou tantas quantas posso ser. Sou tantas quantas consigo. Sou tantas quanto meu corpo cansado suporta e minha alma menina deseja. Eu sou trezentos-e-cincoenta; eu e o Mário de Andrade.


Não é fácil aceitar que somos muitos em um só. E sofremos. Nos sentimos impostores, fraudulentos. Será que eu sou bipolar? Por que raios eu disse que amaria sair pra tomar umas, se tudo que quero agora é curtir minha cama em paz? Como aceitar o fato de que amo meu trabalho, mas amo mais ainda quando chove e nenhum aluno aparece? Por que é que eu atravessei a rua, tímida, ao ver aquele conhecido com quem adoro interagir no facebook?


Como entender o nosso feminismo, que se diz convicto, mas nos flagra com frequência rivalizando com outras mulheres? Que hoje queremos luta e amanhã, logo quando o dia começa, imploramos exaustos pelo acordo de paz? Que defendemos a liberdade do ser amado (e a nossa), mas nos roemos de ciúme e regamos com vigor a semente maldita do sentimento de posse? Que dominamos as teorias mais libertárias, mas nos pegamos reproduzindo os valores mais conservadores? Que no fundo a gente é um poço cheio de contradições?


Como lidar com a sensação de que somos todos fake news de nós mesmos? Talvez essa oposição entre o que somos e o que gostaríamos de ser realmente não exista. Nós somos tantos e somos só um. Mas, se é certo que a gente não pode e nem precisa ser fiel à tal essência, também é verdade que não precisamos dar tanta importância à validação alheia.

Uma vez eu vi uma ilustração muito legal. Era o desenho de uma mulher, que ao chegar em casa tirava a pele de humana e virava uma diaba vermelha, com cara de muita satisfação. Nunca mais esqueci. Essa imagem me perturba e provoca até hoje: será que vale a pena esperar o fim do dia e o girar da chave de casa pra ser quem se é? Por que não jogar fora parte desse figurino e apostar em uma bagagem mais leve?


Se passamos boa parte do nosso tempo arquitetando performances socialmente aceitas, por que é que não investimos essa energia nos acolhendo assim, múltiplos, sem precisar adaptar tanto o roteiro a cada nova situação? Se eu acho mais bonita a música nacional, pra que fingir que entendo e gosto de metal ou de indie? Ou que amo o Tarantino, assisti todos os filmes do Godard sem dormir e li com facilidade os romances do Joyce? Por quanto tempo ainda vou sentir o prazer doído de tirar o sapato alto ou de abrir o botão daquela calça apertada assim que entrar no meu quarto?


Quer saber? Tá tudo bem, taokey? A gente pode ser quem a gente quiser. A louca dos signos que é ateia, o fitness que ama chocolate, o vegano que no fundo quer devorar aquele cachorrão com salsicha na sexta-feira ou a intelectual fodástica que sonha em passar um dia inteiro vendo tevê aberta com um pote de sorvete e sem postar nenhum story conceitual. A gente pode ser quantos a gente quiser. Cola isso na parede do teu quarto e vai ser feliz.


Todo mundo usa máscaras o tempo todo. Todo mundo constrói cuidadosamente essas máscaras pra ser aceito, pra pertencer, pra ser parte da tribo e permanecer na aldeia. E se a gente gasta tanto tempo tecendo e desfazendo (Penélopes loucas!) as carapaças que vestimos pra sair na rua, por que não usar esse tempo aproveitando a grata aventura de viver à flor da (nossa própria) pele?


Juliana Cruz é professora de História, feminista, cervejeira e cassineira apaixonada.

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